SE NÃO HÁ NADA A DIZER. TEMOS QUE APRENDER A VER
“Não há nada a dizer. Temos que ver, olhar. (...)"
(Henri Cartier-Bresson).
(Henri Cartier-Bresson).
Temos que aprender a ver.
Fernando pessoa, através de um de seus heterônimos disse, que somos doentes dos olhos.
Nestes nossos dias, não sabemos o que temos de novo ou modificado em nosso próprio quarteirão. Falo de cores, cheiros, gente, árvores, pássaros, flores, jardins. Nos assustamos com um novo jardim no bairro. Não sabíamos dele. Falo de contatos físicos com pessoas e coisas.
Acaba ficando difícil caminharmos a pé, só nos deslocamos de carros. Por isso nada vemos.
Torna-se cada vez mais difícil aprendermos a ver. Um artista plástico que não aprendeu a ver será eternamente um medíocre. Frequentei há tempos, durante uma semana um curso ministrado pelo professor Paulo Santoro da USP somente sobre a Arte de Ver na Arte. Como e o que ver além do visto, o não visto. Ainda, o que está por trás da arte.
Um barco abandonado, não é somente um barco abandonado. Tem uma rede por sobre ele, apodrecendo. Tem suas bordas corroidas pela maresia, sol, chuva e abandono. Começa a surgir uma história a ser transformada., desvendada. Surge uma leitura que era subjacente a instigar a visão, os sentidos...
Interessante que o abandono parece ter vida. Ele por si só vai corrroendo tudo; madeira pelos cupins e intempéries, o metal pela ferrugem. Os materiais em abandono se deterioram por si, por ação do abandono.
Mais esquisito é uma casa abandonada. Alí parece que o fantasma do abandono trabalha com mais afinco. Chega a assombrar o descalabro produzido. Enquanto o abandono não a transforma em uma tapera, parece não se dar por satisfeito.
Tem o abandono, os seus auxiliares: as formigas, o matagal, animais, as raizes das árvores que se aproximam, vão rachando e derrubando paredes. As janelas, vão perdendo o vigor das tintas e ficando vulneráveis sem essa proteção química.
O insano trabalho do abandono, não é exercido somente sobre materiais inanimados. Trabalha sobre as pessoas. Um ser legado ao abandono, vai se transformando gradativamente em uma ruina humana. Perde os dentes por falta de tratamento, vai perdendo a visão, sem óculos não enxerga e ingressa na ociosidade, a saúde piora, sua vestimenta vai se encardindo, cabelos desgrenhados e crescidos lhe dão aparência mais velha e de mais doente. Causa repulsa às pessoas, embora seja um santo de bondade.
Há mais ou menos uns vinte e cinco anos atrás, passando por uma praça de uma cidade vizinha, vi uma criatura, que de tão bizonha passava a ser interessante. Tratava-se um mendigo sentado em um banco da praça. Em pleno verão, vestido de paletó de lã xadrez marrom, a calça era preta enrolada até o meio da canela. Pernas cruzadas, a perna esquerda no chão. A canela com uma faixa de pano encardido. Os sapatos, não faziam um par. Um era de modelo diferente do outro, cadarços amarrados no tornozelo. Chapéu velho de palha com aba curta, na cabeça. Barbudo, cerca de uns quarenta e cinco anos de idade. Ainda não grisalho.
Era por volta das 11:00h a praça fervia de gente indo para um lado e outro. Saida de clientes de lojas indo para casa almoçar, estacionamentos e bancos em polvorosa. Enfim a cidade em plena vida, gente para todo lado. Ninguém notava, ou via o que eu e o fotógrafo Piña - meu amigo - víamos. Nos encontramos por acaso. O que nós dois fizemos: a leitura visual da cena !
Ele, o Piña, por seu olhar treinado de fotógrafo profissional, eu pelas artes plásticas: óleo e desenho. Somamos os interesses. A arte falou mais alto, "não fomos doentes dos olhos" soubemos ver. Usamos da imagética para ver além da imagem física, revestindo a visão de um imaginário e uma transposição de limitadores do belo e do inusitado.
Detalhe mais importante: o mendigo não estava dormindo, não estava bebendo nem muito menos estava embriagado, estava absorto lendo um jornal aberto. Ao seu lado outros jornais mais desfeitos, um saco de estopa, um pão desembrulhado.
Estava sentado em um banco da praça, ao lado de uma banca de jornais defronte com o Banco do Brasil. Piña o fotografou, eu o rascunhei. Incluí ao fundo, construções antigas que já foram demolidas, do outro lado da praça.
Muito mais tarde, Piña sabendo do meu desejo em pintar aquela cena, me cedeu uma foto, que, somada à minha visão do rascunho, compus uma obra em óleo sobre tela, que denominei: "Auto-estima de um Mendigo".
Procurei usar a cor com tendências ao tom sépia, uma vez que a foto era P&B e ja havia se passado uns anos.
Quem seria aquele homem? O que o levara àquela vida? Sabia ler, e, uma leitura que só atrai pessoas de maior discernimento: o jornal! Quais dissabores, ou tipo de abandono sofrera?
Mas ele parecia feliz! Dai o nome do quadro "Auto-estima...".
Ainda Henri Cartier Bresson disse: [Ver] "É tão difícil fazer isto. Estamos acostumados a pensar, todo o tempo. É um processo muito lento e demorado, aprender a olhar. Um olhar que tenha um certo peso, um ohar que questione".
Um olhar de arte. Ou, a arte de olhar, de ver, de enxergar, aquilo que uma multidão passa por cima e não vê. Um fundo falso na arca do tesouro das imagens, lá onde estão as jóias, os dobrões de ouro, que a sabedoria encontra em suas várias formas de manifestações de arte: a fotografia, não é só clicar, há o espírito da imagem por trás. há o fundo falso para se descobrir. A pintura em suas técnicas, estilos, escolas, suportes. Tanto quanto o desenho, que reputo como base das artes em geral. A música que emana o vento, o cantar dos pássaros o marulhar de águas, com imaginação sentimos o odor da flores silvestres ao ouvir uma sonata, uma sinfonia. A literatura, com suas descrições de cenários, sítios dos acontecimentos, tipo físico das pessoas, a beleza feminina, a riqueza de detalhes descritivos, narrativos, a psique humana em movimento e conformações.
Precisamos aprender a ver. Sabendo ver, não "sendo doente dos olhos" compomos arte. Todas as artes. Surpreendemos os que não conseguem ver além das pontas de seus sapatos.
O horizonte é muito mais do que vemos através de nossa janela.