No Fim
Eu quero morrer. Não agora, mas quero. A eternidade deve ser de uma chatice infindável para a vida como está. Não que ela esteja maçante. Acho que aguento uns 73 anos, sem começar a bocejar.
Não é o desejo da morte em si, mas meus filhos estão criados - e bem criados. Vivi boas histórias: contei algumas, escondi outras. Há certas coisas que ninguém precisa saber; outras há que só quem viveu conosco sabe e que nunca, nunca falamos sobre isso. Era o combinado.
Estou preparado para morrer. Tive anos para me acostumar com a ideia. O que me assusta é o momento em si. Se tudo correr bem, um doce infarto enquanto durmo. Tão doce, que nem me tire do sonho com um belo campo de flores. O perfume inebriante, a brisa fresca produzida por não sei quais impulsos nos neurônios. Certo, aceito um mal súbito, daqueles que se coloca a mão no peito e perde-se a consciência antes da pancada no chão. Algumas horas de agonia também serviriam - já começaria a espiar os pecados ainda em vida; chegaria ao lado de lá com uma dívida menor.
Gostaria que as pessoas recebessem a notícia como a manhã dissolvendo a noite: aos poucos. De forma que ninguém pudesse precisar ao certo o dia da minha grande viagem. Algo como o crescimento de um filho. Um dia pequenos, no outro já nos passaram em altura.
-Já tem quanto tempo que o Nestor se foi?
-Nem sei mais. Grande homem foi aquele!
O que acontece depois? Minha curiosidade também deseja conhecer logo este mistério. Sou curioso o bastante para ter visto documentários científicos (alguns sobre neurônios, como falei antes), mas não dedicado o suficiente para lembrar de tudo. Curioso o suficiente para ter minha religião e conhecer outras, mas não curioso o bastante para apressar a partida.
Que doem meus órgãos - caridade derradeira. Que cremem os restos - não quero um lugar para lamentações. Que me atirem ao mar, abismo, jardim - não faz diferença.
E no fim da vida, que eu olhe para trás com tristeza nos olhos, por deixar a quem eu amo e quem me ama, mas o coração jubilante por ter feito o que pude. Que os acertos somados sejam maiores que os erros.
Finda a vida, que a morte me chegue como uma amiga que me vê, sorri, me abraça e me leva, como boêmios a esmo na madrugada. E que, mexendo os pauzinhos, contando piadas, talvez eu consiga mais um tempo - cinco ou dez anos. Estou preparado, mas vamos com calma...