eu vi

O olho alegre e sorridente de outrora estava fixo no horizonte infinito. O brilho fora substituído por um tom de cinza bem claro, como se fosse uma película sobre as suas glândulas. Respirava ainda quando foi removido para o acostamento. O carro que o atropelara seguiu seu rumo como se nada houvesse encontrado pela frente. A criança olha pelo vidro, ainda assustada com o barulho provocado pelo pequeno corpo em contato ríspido com a lataria do carro importado. As luzes vão passando aceleradas à sua frente. O som dos motores e o dos pneus em contato com o asfalto chegam-lhe aos ouvidos invadidos por grande quantidade de sangue. Passava para o outro lado, não vira nem ouvira o medo chamando-o.

A pressa em encontrar algo para alimentar-se tomara o lugar do medo. Encolhido ele agoniza. Uma agonia muda, silenciosa, triste. Pessoas passam apressadas, talvez atrasadas por conta do transito provocado pelo acidente. Há muito sangue no chão. Olhares se cruzam tentando buscar explicações. Um funcionário da prefeitura chega ao local, puxa-o pelo cauda, cava uma pequena cova embaixo do viaduto com uma enxada meio cega. Dá golpes na terra que se abre para receber de volta às suas entranhas aquilo que há tempos ajudara a produzir. Dá uma última olhada para o céu azul de quinta-feira cedo. Era uma manhã gélida. O homem agasalhado mete suas mãos em uma luva amarela de borracha, já suja, e puxa o pequeno vira-latas para sua derradeira casa, às margens da Rodovia Régis Bitencourt.

Adriano Paulo
Enviado por Adriano Paulo em 11/07/2013
Reeditado em 11/07/2013
Código do texto: T4382235
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.