PASSAGEM

     Lembra-me, na clara penumbra dos dias presentes, um outrora distante já quase extinto. Alheio a um infindável e magnífico mundo de figurações adúlteras, um pequeno corpo adentrava a densa floresta.

     Lembra-me o medo que se me corria como sangue nas veias e o pensar no porvir em algum ponto do dia seguinte que contivesse alguma sublimidade que me aliviasse.

     Neste caminhar perdido entre grandes e sombrosas árvores e belos bosques vivos, alternando-me entre as descobertas dos fios de uma rede fria que ia se tecendo por si só e oníricos vigorosos de novas auroras sem caminhos perdidos, invocados em manifestações silenciosas nos indecifráveis labirintos de minha pequena mente, na construção do sempre momento seguinte, liberto de dores e de angústias minhas e dos demais coabitantes de toda parte, avistei um casebre cujas paredes eram feitas de doces de todos os sabores, que me despertavam sentidos confusos. Em suas janelas, figurinhas de heróis e de deuses compunham melodias suaves e convidavam a uma visão inconspurcada para o além de tudo que se pudera haver desde o primeiro choro descobiçado e após o derradeiro lamento em contrições por violações que ainda me eram alheias, contidas nos tempos, nos espaços e em todos os reinos constituídos ou que viessem a ser inaugurados.

     Lembra-me quando caminhei com meus pequeninos pés sobre os espinhos e as flores que havia no chão e nos ares em direção ao casebre, ainda inadvertido de que falsos eram os deuses e insulsos eram os doces contidos em suas paredes. Proximamente, surgia à porta um contraste a toda minha querência: uma velha senhora se apresentava para me receber. Foi espantosa a visão daquele ser abrigado em um longo vestido preto, com suas unhas de cascos, seu corpo decadente, e eu semblante desfigurado. De sua boca me eram ditas palavras surdas que ainda não me poderiam ser reveladas.

     Haveria de terminar a caminhada ao centro da densa floresta e adentrar o pequeno casebre e, quando mais me aproximava, mais aquele ser se curvava sobre o próprio peso e mais informe se tornava seu vulto assustador, enquanto ia-se apagando todo o resto do casebre com seus heróis e deuses bucólicos e com seus sabores se perdendo em um inédito cheiro que começava a impregnar todo o ar. Atrás, a mata se fechava de tal modo que não me seria possível regressar de modo algum, deixando tão somente tênues lembranças de utopias mortas.

     E a sublime capacidade de ver o dia seguinte, como um porto esplêndido a libertar grilhões sempre presentes, se ia morrendo com a descrença que se instalava. Já diante da estranha criatura, percebi quando uma gota de lágrima brotava-lhe dos olhos, silenciando-lhe os murmúrios ininteligíveis. Todo o resto já tinha se ido neste momento após a inevitável passagem que acabara de fazer, quando levantei diante de meus olhos as mãos que, nem de longe, lembravam a simplicidade do momento anterior. Estavam imensas e delas corriam um suor enodecido entre longos, obscenos e inquisidores dedos.

     Diante do olhar do vulto que definhava em dilacerações incompreensíveis, tateei-me o rosto estranho pra o qual tinha migrado em máscaras todas as imagens já contempladas ou por virem a nascer da transformação. Contemplei-me a mutação completa aos tatos de minhas mãos: Meu corpo havia se agigantado e estava tomado por novas fomes e sedes insaciáveis que norteariam o devaneio que se me assentava e que me conduziria a novos caminhos onde o ego se instalava fortemente em meio a todas as demais coisas.

     Essências insalubres começavam a se emergir de mim em raios indiscretos que contaminariam todas as veredas e acoitariam todas as faces de seus habitantes, após volúpias de enlaces perjurados, ritmando compassos salpicados a ouro falso.

     Adormecida a criança em meio a pétalas de flores mortas, acordara-se de mim, na alva do dia, a inevitável efemeridade de ser homem, e máscaras que os vestem. Já totalmente desnudado em corpo e em cerne, e mergulhado na condenação de uma nova existência que empurrava meu ser a searas de nobrezas apóstatas com suas flores artificiais espalhadas pelos caminhos, elevei o olhar ao semblante distorcido que se postava a minha frente, cujo rosto, no derradeiro a respirar do pequeno templo abandonado, ia se apagando como um último acorde desvairado.

     Com o espírito mudo e incapaz de evitar a embriaguez que se me assentava, de suas mãos estendidas, antes de se ir, uma última lágrima caía sofregamente pela terra agora árida. Então pude entender de sua aura partida:

     - És agora um homem, meu filho.

     Péricles Alves de Oliveira
Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent)
Enviado por Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent) em 10/07/2013
Reeditado em 15/07/2013
Código do texto: T4380947
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