Comida, cadeia e "amor".

Acho engraçada toda essa forma de “amor” e de “paixão” desses relacionamentos tradicionais, daqueles namoros que parecem a sobra do jantar de quarta, que você quer se livrar mas fica com dó de jogar fora. É que esse jantar de quarta, um dia, já foi o jantar da noite, já foi um jantar que você esperou muito para saborear. Assume um papel de adorno na geladeira, ficamos com dó de jogar fora. Tudo isso quando há ai, pelo mundo, tanta gente morrendo de fome de amor.

Esse amor estraga, mas não como a comida, isso era só uma premissa básica. Ele se estraga se transmutando, o que era amor passa a ser posse. Os carinhos? Viram uma demanda, com prazo, data e hora para serem cumpridos. Vocês estão transformando o amor em um contrato de obrigação de fazer amalucado.

Não bastasse essa visão de amor com uma posse, ainda transmutam-no em algo muito mais perverso! Como se a própria coisificação de algo tão desmedido e pleno não o fosse. Vocês, nós, todos estamos fazendo do amor uma forma de cárcere. A que ponto chegamos? Digo, começamos a nos apropriar de notórias formas de adestramento social, e isso não é de difícil percepção.

Explico: Nosso lugares, nosso multiverso de ambientes possíveis, começam a se restringir em decorrência do apego pela mesmice da rotina. O casal começa a ter horário e dia para se ver, como se não fosse algo natural. Caros, uma das principais, e mais clássicas, funções do cárcere é exatamente essa: adestrar seres humanos para ocuparem determinado lugar, em determinada hora e com determinado comportamento.

É nisso que se funda o cárcere, e não vemos por aí pessoas que gostem de estar presas. Não conheci um preso que nutre amor por tamanha dilaceração de sua virtude, mas conheço dezenas de casais que amam toda essa estrutura. Isso porque o cárcere penal é muito mais óbvio que o sentimental, aquele é explicito e este não.

Toda inventividade humana advém de uma inexplicável necessidade por segurança: inventamos a cadeia, inventamos a monogamia, criamos até um Leviatã para nos infantilizar e tirar de nós a capacidade de resolvermos os nossos próprios problemas, as pessoas chamam ele de Estado. Tudo isso por sermos inseguros, daí a fixação por uma segurança.

Essa necessidade por proteção, toda essa insegurança, acaba por fazer aflorar em nós um certo distúrbio, acabamos nos afeiçoando por aquilo que tira a nossa liberdade e nossa plenitude, o autismo é tanto que basta um dos prisioneiros dessa cela sentimental começar a querer sair da jaula que o outro, que antes era objeto de amor, assume a figura de encarcerado-carcereiro: reforça a imposição de condutas, cobra sua presença em lugares e em determinados horários!

E vejam como os próprios comportamentos são semelhantes: Percebemos que precisamos nos adequar para conquistar de volta um cadinho de liberdade, empreendemos valorosas horas em discussões infindáveis sobre o relacionamento, mudanças e etc. Lá dentro das prisões, apreendem a se comportar para progredirem de regime, obter o livramento condicional.

Bingo! Todo esse empenho dá certo (pelo menos para quem se quer ver livre, liberto) lá na cadeia chegar o alvará de soltura, para que liberte o pobre demônio. Aqui fora, finalmente, você consegue sair só com seus amigos sem o seu parceiro. Mas é claro que não é assim, fácil, desapegar das velhas e boas estruturas de controle!! O preso torna de mês em mês para assinar no fórum, da mesma forma que o companheiro liga – de hora em hora – querendo saber onde e com quem você está (novamente a preocupação com o espaço físico).

Tenho para mim que as relações entre cárcere e relacionamentos tradicionais são bem semelhantes, seja pela sua estrutura, seja pelo seus efeitos na disciplina do corpo. E por que não pelo resultado? O índice de reincidência mundial é de 70% e as pessoas continuam traindo. As duas estruturas faliram.

Tudo que é sólido se desfaz no ar, meus caros, é tempo de repensarmos nossas inseguranças e nos permitir a liberdade.

Deadeye Poem
Enviado por Deadeye Poem em 06/07/2013
Reeditado em 18/09/2015
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