Viver a si mesmo

“Estou tão angustiado por causa da minha filha”. O que significa isso? O que é deixar que nossa alma doa-se pelo sofrimento que não é nosso? O que é deixar que nossa mente foque-se nos problemas que afligem outras mentes? Isso é ser solidário?

Sabemos todos nós dos novos tempos que estamos vivendo. Todos nós já ouvimos dizer que estamos vivendo a pós-modernidade, e por inovação sociológica, chamou-se ao nosso novo modo de viver de “viver líquido”. Estamos em meio a uma “pós-modernidade líquida” (Zigmund Balman). Essa pós-modernidade é caracterizada pela ausência, perda gradativa da solidariedade, despir-se do cuidado ao nosso semelhante, vestir uma fantasia alugada do egocentrismo e maquiar-se da falta de humanidade. Então, porque está tão difícil de descortinar o tecido da angústia de nossas vidas? Porque nunca foi tão difícil como hoje sofrer tanto o sofrimento que não é nosso?

Alguma coisa está errada. Algo não faz sentido. Existe um grande hiato, existe uma grande lacuna entre o que estamos observando e o que sentimos intimamente, o que se passa verdadeiramente em nosso coração e em nossas mentes.

Vamos remeter-nos a um laboratório íntimo de nossas sensações. Remetamo-nos a um lugar qualquer, num bairro qualquer, andando por uma erma rua dentro de nossa fantasia, o nosso laboratório particular. Estende-se no chão, recostado a um muro de pedras, entre possas de água e sujeiras trazidas pelo vento, deixadas por alguém, um maltrapilho. Alguém esquecido pela vida e pela morte, passando pelo viver como se vegetal fosse. Vegetal é. Num repente inconsciente, sem pensar em filosofia alguma, desviamos o olhar, dirigindo-nos para frente, matando aquele ser humano dentro de nós. Está morto. Alguns segundos de culpa, e tudo acaba, felizes e contentes continuamos a caminhar. Estamos novamente vivendo nossos problemas, nossas preocupações, nossas prioridades. Ah, Balman tem razão, somos assassinos dolosos de nossa própria solidariedade e humanidade. Então, ao chegar à esquina encontramos nosso primo distante, que não vemos há anos. Trocam-se beijos, emprestam-se abraços. Ele se separou, ele está desempregado. Inicia-se uma tortura mental que irá prolongar-se até o dia seguinte, quando nasce um novo dia, a vida é renovada pelo amanhecer. Povoou-se de fantasmas nossa indefesa mente, submetida aos nossos sentimentos indomáveis.

Pronto, voltamos de nosso valioso laboratório de sentimentos íntimos. O que aconteceu? Que monstruosa desconstrução da nossa personalidade ocorreu bem dentro de nós? Onde foi parar aquela moral incondicional que alimentamos a vida inteira. A moral que não é imposta, mas que fizemos nascer no tribunal do foro íntimo? Descartamos um sofrimento humano tão facilmente como trocamos de camisa, e no mesmo instante, mergulhamos num sofrimento inútil e sem valor, e nos dois casos, o ego soube proteger-se, permaneceu intocável, preservou-se. O que se esconde por traz de tudo isso? Quem nos manipula para guiar as sensações e emoções de forma tão desordenada e estéril?

Temos um laboratório real da vida. Por mais de dez anos vemos as pessoas esbarrarem-se umas nas outras, sofrerem humilhações, destituídas do direito à dignidade, ao voltar do trabalho de um dia inteiro e precisar pendurar-se como carne de açougue, num transporte desumano para voltar para casa. Vinte centavos foram suficientes para acordar o gigante adormecido. Não vejo sanidade nisso. Vejo acomodação, conformismo, resignação, tolerância excessivamente passiva.

O que assemelha os dois experimentos, um no laboratório da vida o outro em nosso laboratório intimo? Num, vinte centavos, noutro um parentesco. O que se assemelha é a certeza do fato tornar-se conhecido. Todos vão saber que estaremos pagando 20 centavos a mais para sermos transportados como porcos, no outro caso, todos familiares saberão encontramo-nos casualmente, meu primo e eu. Isso quer dizer que, se a situação que nos angustia é sabida pelos outros, sentimo-nos obrigados a sofrê-la. Volte ao laboratório íntimo e troque o primo por alguém que nunca veremos mais, foi alguém que encontramos casualmente. Pronto está provado o nosso temor à culpa.

A culpa é tão avassaladoramente pesada para nós mesmos, que fazemos de tudo, qualquer coisa, para que não a sintamos. Porém essa é uma culpa específica. Uma culpa de nossa imoralidade ser descoberta. Então teremos que dar satisfação a quem quer que conteste a nossa falta. Se não houver contestação, não há culpa. Se não houver testemunha, não há culpa. Como no código penal: não há crime se a ação é lacuna em lei. Não há culpa se ninguém souber. O coração não sente o que os olhos não veem.

Bom, resolvemos nosso problema. Só há angústia se nossas ações são conhecidas. A solução...bom, isso cada um dá. Viver numa ilha deserta ou ser autentico e verdadeiro consigo mesmo.