Sobre o Estatuto do Nascituro

É longo, mas também é importante.

Estou aqui pensando sobre o Estatuto do Nascituro e certamente já tem gente ~irritada~ com a repercussão do assunto, pelo menos na internet. Vamos refletir sobre o projeto de lei e depois vocês me dizem se essa discussão não é mesmo digna de preocupação.

Esse estatuto visa proteger "integralmente" o nascituro, ou seja, "o ser humano concebido, mas ainda não nascido." Cabe ressaltar que "o conceito de nascituro inclui os seres humanos concebidos in vitro, os produzidos através de clonagem ou por outro meio científica e eticamente aceito."

Além da nebulosidade do projeto de lei (a ideia de proteção integral é muito abrangente), um dos problemas diz respeito à questão do aborto. Antes de qualquer coisa, devo dizer que nenhuma mulher engravida para depois simplesmente optar por um aborto; não é simples assim. Ninguém gosta de abortar e não precisa ser muito inteligente pra saber que a experiência de um aborto pode ser extremamente desagradável, dependendo das circunstâncias. E num país em que o aborto é ilegal, com certeza a experiência é pior ainda, pois os métodos clandestinos existem e colocam muitas mulheres em risco todo ano. Enfim, eu só queria deixar claro que defender o DIREITO ao aborto não significa BANALIZAR a questão. Como mulher, eu gostaria que todas as mulheres pudessem ter total autonomia sobre seus corpos. Se for ver, não é pedir muito, mas quanto escândalo isso gera...!

Enfim, vamos ao estatuto. Durante a leitura, minha preocupação foi aumentando cada vez mais, até que me deparei com o artigo a seguir:

Art. 13 O nascituro concebido em um ato de violência sexual não sofrerá qualquer discriminação ou restrição de direitos, assegurando-lhe, ainda, os seguintes:

I – direito prioritário à assistência pré-natal, com acompanhamento psicológico da gestante;

II – direito a pensão alimentícia equivalente a 1 (um) salário mínimo, até que complete dezoito anos;

III – direito prioritário à adoção, caso a mãe não queira assumir a criança após o nascimento.

Parágrafo único. Se for identificado o genitor, será ele o responsável pela pensão alimentícia a que se refere o inciso II deste artigo; se não for identificado, ou se for insolvente, a obrigação recairá sobre o Estado.

É isso mesmo. Se uma mulher for estuprada e se o estuprador for identificado, ele terá de pagar pensão; quer dizer, de alguma forma ele fará parte tanto da vida da vítima, quanto da vida de um ser humano concebido durante o ato de violência sexual. Ruim para a violentada, ruim para o ser humano oriundo dessa agressão.

E, além de tudo, se a mãe não quiser assumir a criança, pode disponibilizá-la para adoção. Que belo serviço para a sociedade! Você não pode abortar nem mesmo nas primeiras semanas, mas se quiser, não precisa criar essa criança, porque outra pessoa vai cuidar dela -- ou não!!

Agora, você pode me dizer: "mas aí não está dizendo que a mulher seria obrigada a ter esse filho" ou "isso não deslegitima o aborto". OK, então vamos ler mais um pouquinho...

Dos crimes em espécie

Art. 22 Os crimes previstos nesta lei são de ação pública incondicionada.

Art. 23 Causar culposamente a morte de nascituro.

Pena – detenção de 1 (um) a 3 (três) anos.

§ 1º A pena é aumentada de um terço se o crime resulta de

inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as consequências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante.

§ 2º O Juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária. (!!!)

Art. 24 Anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto:

Pena – detenção de 1 (um) a 2 (dois) anos e multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada de um terço se o processo, substância ou objeto são apresentados como se fossem exclusivamente anticoncepcionais.

Art. 25 Congelar, manipular ou utilizar nascituro como material de experimentação:

Pena – Detenção de 1 (um) a 3 (três) anos e multa.

Art. 26 Referir-se ao nascituro com palavras ou expressões manifestamente depreciativas:

Pena – Detenção de 1 (um) a 6 (seis) meses e multa.

Art. 27 Exibir ou veicular, por qualquer meio de comunicação, informações ou imagens depreciativas ou injuriosas à pessoa do nascituro:

Pena – Detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa.

Art. 28 Fazer publicamente apologia do aborto ou de quem o praticou, ou incitar publicamente a sua prática:

Pena – Detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa.

Art. 29 Induzir mulher grávida a praticar aborto ou oferecer-lhe ocasião par a que o pratique:

Pena – Detenção de 1 (um) a 2 (dois) anos e multa

Bem, acho que já deu pra perceber que o aborto não é bem vindo sob circunstância ALGUMA, ou seja, não importa se você foi estuprada, se você tem uma doença grave, ou se você teve uma doença grave e passará por procedimentos que poderiam colocar a gravidez em risco, etc. Não se poderá nem ficar discutindo muito a questão do aborto, pra não correr o risco de ser pres@ por fazer apologia!! Ainda não acham que ficou claro? Calma, que ainda chegaremos ao final...

Achei interessante a parte da justificação. Lá se fala sobre a lei "Unborn Victims of Violence Act" dos Estados Unidos, e sobre uma outra lei sancionada na Itália que também "dá ao embrião os mesmos direitos de um cidadão". O texto diz que seria importante seguir esses "bons exemplos". Só que não mencionam um detalhe: o aborto é legal nos Estados Unidos desde 1973 e, na Itália, foi legalizado em 1978, desde que seja feito nos três primeiros meses de gestação. O "Unborn Victims of Violence Act" diz respeito a crimes praticados contra a mãe E o nascituro, ou seja, se a gestante for machucada e esse dano atingir a criança ou, por exemplo, se ambas morrerem por meio de um homicídio doloso ou culposo, aquele que cometeu o crime responderá não somente pela mãe, mas também pelo nascituro. Outro exemplo: uma gestante é atacada de alguma maneira e tem a gravidez interrompida em decorrência da agressão; nesse caso, o réu responderá pela agressão e pela morte do nascituro. É nesse sentido que o nascituro possui direitos de um cidadão, não significa que a mãe não pode realizar um aborto caso seja necessário ou caso seja a vontade dela. Em suma, os exemplos de lei citados não coincidem com as reais intenções do Estatuto do Nascituro. É só prestar atenção nesse parágrafo, ainda incluso na "justificativa":

"Outra inovação do presente Estatuto refere-se à parte penal. Cria-se a

modalidade culposa do aborto (que até hoje só é punível a título do dolo), o crime

(que hoje é simples contravenção penal) de anunciar processo, substância ou

objeto destinado a provocar aborto, elencam-se vários outros crimes contra a

pessoa do nascituro e, por fim, enquadra-se o aborto entre os crimes hediondos."

INOVAÇÃO?? Gente, pelamor... onde é que isso é inovação?? O aborto se tornará crime hediondo, e além de tudo, será criada a modalidade culposa... quer dizer, se você sofrer um aborto espontâneo, provavelmente será investigada e correrá o risco de ser acusada de causar o aborto de alguma maneira. Pra mim isso cheira a retrocesso. E dos grandes.

Acho que deu pra perceber que esse Estatuto do Nascituro é um assunto muito sério. Como eu disse, defendo a autonomia da mulher sobre seu corpo e acredito que optar pela realização de um aborto não é NADA fácil. Mas também acredito que há uma série de motivos que validam essa escolha. De tempos em tempos vemos alguma notícia de crianças jogadas em algum córrego logo após o nascimento, ou abandonadas em qualquer lugar. Há mulheres grávidas de seus estupradores, mulheres que morrem ou ficam com sequelas em decorrência de abortos clandestinos, mulheres que não possuem condições financeiras e/ou psicológicas de ter um filho, mulheres que fazem parte daqueles 0,3% (a cada 100 mulheres) afetadas pela falha de anticoncepcionais e que não se sentem aptas a terem um filho de repente, mulheres que são simultaneamente mães e irmãs do(s) próprio(s) filho(s) por causa de estupros realizados dentro da própria família, mulheres que vivem uma gestação perigosa tanto para ela quanto para a criança, mulheres acometidas por doenças sérias descobertas durante a gestação, e tantas outras mulheres que não são mencionadas porque nem todo mundo sabe que existem...

O Estatuto do Nascituro é extremamente irônico e absurdo; intenciona assegurar um direito por meio da anulação de tantos outros direitos vitais das mulheres...