Sofia

(Da série "Coisas que eu escrevo")

"Era um daqueles sonhos que eu não poderia esquecer, tão real enquanto durou que eu não podia simplesmente levantar e fingir que não lembrava e a simples ideia de deixar aquele sonho cair no esquecimento parecia uma afronta a cada simples (porém imenso) sentimento que ele provocou durante o tempo em que ele aconteceu como um filme na minha mente, um lindo filme em cor de rosa, pintado à mão, gostoso como risada de criança. E eu estava nele, eu sendo o menos importante naquele filme, mas eu estava nele e por isso mesmo lembro dos momentos mais importantes, embora sejam os menores, os momentos mais coloridos ficaram na minha memória como algo que eu realmente vivi, mas mesmo as cores e as imagens se apagando lentamente teimavam em lembrar-me novamente que era apenas um sonho...

Eu estava diferente, não sabia dizer realmente o que era até que eu olhei pra baixo e e vi aquele volume esticando minha blusa, por alguns segundos eu não entendi, mas como um clique o entendimento piscou diante dos meus olhos e eu percebi que era minha barriga, minha boca se abriu num "o" mudo enquanto eu percebia o que aquilo significava. Eu estava grávida? Eu estava grávida! Automaticamente, eu passei meus dedos suavemente pelo volume embaixo da minha blusa, na tentativa de confirma que era mesmo a minha barriga ali e, próximo ao umbigo, eu senti algo, meus dedos pareciam ter sido tocados pelo que estava ali dentro e eu reconheci um leve chute, meu bebê estava chutando. De repente, a consciência e a alegria daquele momento inundaram completamente minha alma, eu senti meu sorriso abrir de orelha a orelha (como dizem), mas acredito que era ainda maior que isso e, mesmo sem poder ver, eu tinha certeza que meus olhos brilhavam naquele momento mais que o sol escaldante das duas da tarde de um impiedoso dia de verão. Meus dedos continuavam acariciando minha barriga, ainda lembrando do tímido chute e cada vez mais eu queria poder atravessar minha própria pele e sentir a pele macia do bebê que estava ali dentro, agora eu estava totalmente consciente do presente e ansiava pelo futuro, pela chegada iminente do meu pequeno chutador.

Depois disso, o sonho passou quase como um borrão, em um segundo eu estava na mesa, uma espécie de líquido gelado era esfregado na minha barriga, lembro de ter tido medo que meu bebê ficasse com frio, mas aos poucos ia relaxando com a deliciosa sensação do líquido sendo espalhado de lá pra cá, indo e voltando, da mesma forma que antes eu acariciava minha própria barriga. Então, quando eu sentia a inconfundível sensação do sono chegando, eu ouvi... era um som abafado, um instrumento musical? Não era, mas naquele momento, foi melhor do que ouvir qualquer piano, foi mais gratificante que uma música escrita pra mim mesma e eu derramei mais lágrimas de alegria do que julgava ser capaz ao ouvir o coração do meu filho batendo, embaixo da minha barriga e do líquido gelado, a melhor música, o melhor som que eu já escutara e eu não lembro de outra vez ter me sentido tão feliz.

Mais uma vez o borrão, como um filme no qual apertamos o botão de "avançar". Naquele meu filme cor de rosa, o botão foi apertado novamente e na próxima cena que eu lembro, eu estava novamente em cima de uma mesa e chorava de novo, só que era diferente, eu chorava com dor, estava com uma roupa diferente e pessoas que eu não conhecia passavam ao meu lado, outras empurravam a mesa em que eu estava,eu ouvia as palavras "bolsa", "estourou" e me surpreendi quando eu mesma sussurrei "cesárea", a voz saindo entredentes em meio a dor que eu sentia, toda a situação um tanto caótica e mesmo naquele momento, eu lembrava da minha barriga e do meu bebê que estava dentro dela, mais uma vez a consciência tomou conta de mim, eu deixei de lado toda a dor, todas as pessoas, a mesa, as agulhas, o frio, o caos e só pensava no bebê e em como eu queria que alguém me respondesse como ele estava, mas a única coisa que eu sabia era que eu precisava da dor para ver o meu filho, a dor fazia parte de tudo, tive um rápido flash das antigas aulas de biologia e de alguma forma eu já sabia que tudo estava bem, tudo correria bem, eu deixei o medo que estava sentindo de lado e comecei a contar o segundos para finalmente encontrar com o meu pequeno chutador, cujo coração batendo era como música, e eu finalmente poderia sentir a sua pele macia sob meus dedos.

Eu não lembro de muito depois disso, afinal, os hospitais são todos iguais, as salas de parto são todas iguais, mas o peculiar, o que era único para mim passou pelos meus olhos em câmera lenta, ficando guardado na minha mente no lugar mais especial que um sonho pode ficar. Pela terceira vez, eu estava numa cama, eu mesma vestida com uma camisola cor de rosa, do meu lado minha mãe passava a mãe pelo meu cabelo curto, ainda úmido pelo suor. Eu estava sentada, estava cansada, exausta na verdade, mas eu sorria. Eu sorria porque tinha algo em meus braços, que ainda tremiam muito levemente pelo cansaço e pela emoção. Aos poucos eu deixava de me concentrar no que acontecia à minha volta e só tinha olhos para o que eu tinha em meus braços, mas ainda pude ouvir a voz distante de alguém dizendo "parece que estávamos errados sobre ser um menino". Eu parei de registrar as vozes depois disso, toda minha atenção e meu ser voltados para os meus braços e a coisa mais linda e especial que eu já tinha visto em toda minha vida até aquele momento. Lentamente, eu deslizei uma das mãos para o coração do meu bebê e ri ao sentir as batidas suaves da minha música preferida, depois passei a mão pelos cabelos finos e pelo rosto macio e rosado, enquanto não conseguia desgrudar os olhos do olhar cor de avelã que me encarava curiosamente, eu ria e ria de novo sem conseguir controlar a alegria que sentia. Então pus os meu indicador na pequena mãozinha que escapava da manta cor de rosa e os dedinhos se fecharam ao redor do meu, um toque, uma forcinha leve e eu não lembro de ter sentido amor maior que o que eu sentia ali naquele quarto de hospital, era impossível, era um amor que me inundava, era agora uma parte de mim e me acompanharia até que eu desse meu último suspiro, "maior", "grande" e "imenso" não eram suficientes para descreve-los, meu amor foi mais uma vez traduzido em lágrimas e eu sorri com a consciência de que nunca poderia explicá-lo fielmente em palavras, mas eu o sentia com todas as forças e isso era suficiente. Ali, naquela manta cor de rosa, os olhinhos de minha filha começavam a fechar, ela começava a dormir embalada pelo som do meu riso enquanto seus dedos ainda estavam fechados nos meus. O volume sob a minha blusa, amor, alegria e um coraçãozinho que batia ao som de uma melodia, minha pequena chutadora e o nome dela era:

_ Sofia..."