Um primor de moço.

Era tido como um daqueles sujeitos que você pode levar tranquilamente para conhecer a tia-avó que é meio surda,meio chata e muito conservadora.Ele ouvia com atenção, se esticava no assunto e até sorria agradado, como quem estava gostando de ouvir sobre antigamente. Apertava a mão, dava dois beijos estalados e saía deixando a senhora embasbacada. Fazendo aquela cara de espanto, e mal disfarçando o tom de voz de quem me cobra uma atitude dizia: "esse você pode trazer aqui de novo."

Lia demais. Até mais do que eu julgava normal. Eu leio muito, mas ele? nossa! Íamos de Dostoiévski a Jorge Amado entre um gole e outro de coca-cola. Seu único vício, segundo dizia.

Era educado, daqueles que leva até o portão de casa,abre a porta do carro, puxa a cadeira e sabe usar com perfeição as palavrinhas mágicas. cavalheiro como que só!

Tinha um senso de humor crítico e sarcástico, do tipo que me agrada. As tiradas mais absurdas e oportunistas eu ouvia, enquanto o riso saia frouxo e sem direção.

Era intenso toda a vida. Ligava de madrugada porque tinha sonhado comigo. Aparecia na porta da minha casa,no meio da chuva, porque tinha urgência em me ver. Como não se deixar levar?

Beijava como ninguém. Amava como ninguém.Me lembro que num dia na praia, ele olhou para as ondas e disse, como quem diz nada sem importância: "vamos ser felizes para sempre,olha que legal."E eu fiz aquela cara de mocinha de filme do intercine, que mal acredita na sorte que está tendo.

E sem quê nem porquê, tudo isso mudou.

A sua intensidade, começou a me machucar. O seu sarcasmo, foi ganhando força até me agredir. Sua leitura, virou material de arrogância e até mesmo sua educação, passou a ser inexistente. Os beijos ficaram frios. O amor ficou frio. Eu dormi com aquela sensação de azia,tentando digerir a insensibilidade.

Um dia eu liguei e ele não atendeu. Não foi no encontro.Sumiu das redes sociais. desapareceu do posto 9 da Praia. E eu tive a certeza de que estava doida de vez. Semanas depois recebi um SMS no celular dizendo. "não dava". Curto e grosso. Sem outras explicações, até porque depois de tanto tempo sumido, se explicar pra quê?

Passou 2 meses e a dor não. Fiquei sabendo por um amigo, do amigo do amigo, que ele tinha outro alguém. e depois mais outro Alguém. E depois outro. Enfim eu tomei aquela dose de esquecimento que somente o tempo é capaz de dar e parei de perguntar. Ocasionalmente ainda houvia o nome dele em algumas conversas, mas não doía mais.

Dois anos se passaram. Eu andando no shopping, conversando com minha irmã e uma amiga em comum e ela faz aquela cara estática de quem está prestes a me ver entrar em colapso.

Era ele vindo na minha direção. Sorrindo na minha direção. Minha memória fraquejou por um momento. Quem era? conhecido do trabalho? voluntário de algum canto que você frequentava? Carnaval de 2011 em São Pedro da Aldeia?

No cumprimento sorridente, fui inundada de lembranças. Passou um curta metragem, onde eu ia da alegria até a tristeza num segundo.No beijo estalado, uma nova pontinha de dor. Ao sentir o velho cheiro de Hugo Boss e o roçar da barba no meu rosto, o SMS estava ali, na minha frente de novo pra ler:"não dava".

Respondi com educação e cortesia. Não sou do tipo que cultiva inimizades. Sorri, enquanto uma ínfima parte de mim ainda esperava por uma explicação. Não houve nenhuma. Só um convite pra tomar um chope e bater um papo. "vamos marcar.Eu vou te ligar." ele disse. Deu dois beijos estalados e saiu deixando uma nuvem de perfume pra trás.

Minha irmã me olhou indecisa, sem saber se perguntava se eu estava bem ou me abraçava. A amiga, entusiasmada pelo sorriso, pela barba, pela educação e provavelmente pelo cheiro perguntou:

-Que lindo! quem é?

-alguém do meu passado. respondi

-nossa, que educado e simpático.Adorei ele!

-sim.é um primor, como diria minha tia-avó.O único defeito é o hobby estranho que tem.Colecionar corações partidos.