NÓS, HUMANOS: TÚRBIDOS PRIMORDIAIS
 
Sinto uma convergência estranha entre imensidades às quais fonteamos e insensatezes forjadas com um poder absoluto de gestação, do qual não podemos nos desprover. Se nada há antes, nem depois de nós; se lugar algum existe sem nós, e se mesmo inexistências nos pertencem por idealizações; se nossos deuses, mitos, demônios e demais vultos obscenos servem apaziguar nossas fomes insaciáveis; se nos permitimos emoções que nos ceguem perante singularidades outras tão vastas como nós; se nos chaveamos em portos de onde nos damos direitos de escolhas, às sombras de nossas próprias irradiações imperceptivelmente violadoras; e se nos fortalecemos nos recônditos de eternas almas de amplitude universal; que se há de dizer da cerimônia macabra, em que nos postamos, coexistentemente, como noivo e noiva a gerar de nossas entranhas todas as plântulas, vivas ou por vierem, mortas ou por vierem a morrer, e todas as inaugurações de qualquer ponto do espectro ou dele fora?

Eis que tal ilimitado poder de criação e de assimilação de tudo em nossa origem me parece barreira invisível, que nos aprisiona de forma cada vez mais incontida. Ousar contemplar ou sequer imaginar tal barreira, ou além dela, apenas a faz ficar também nossa refém, num paradoxo insolúvel sobre nossos âmagos tacanhos, mas capazes de irradiar, centrada e infindavelmente, todas as possibilidades, como enxovias encouraçadas de incomensurabilidades, libertas dentro das tênues e incompreensíveis muralhas de onde emanamos todas as gêneses possíveis ou não.

Que de mim pudesse não ser origem, melhor fora se não houvesse me atrevido a conceber alguma impossibilidade, nascitura e infalivelmente condenada pela nova inauguração advinda da incapacidade de atingir o não-gerado de mim mesmo. É assustador defrontar tal anomalia: enquanto se pode caminhar pelas estações e respirar o suave ar que nos circunda, contiguamente, toda concepção e todo poder está para nossas vidas parcas, assim como a grande barreira está para nossa onisciência, sempiternamente criadora.

Perdida a condição humana (e até o desumano me é possível, apenas por ainda ser humano) que haveria? Se ouso dizer que venha a ser nada, inauguro o nada. Se ouso dizer venha a haver um frio imenso e insentimental, inauguro tal frio. Se ouso dizer que haverá vida eterna com um Deus onipotente a nos zelar, inauguro um paraíso. Se ouso dizer qualquer coisa, inauguro todos os liames da demarcação minha. E isso se dá simplesmente por, sendo anomalia-centro que a tudo pode gerar, inauguro qualquer ato de pensar havido ou por ainda haver.

Se me esforço indigentemente e adentro a mata sombria, vislumbro a morte como barreira, e violo-a também por estar vivo. Se impinjo um olhar além da carcaça que um dia se desmoronará, crio-me após a passagem de uma forma ou de outra, pois todas as possibilidades, ou impossibilidades, de todos os infinitos me são. Não tenho como nem fechar a porta de meu quarto para me cegar, pois o fora que não descortino, também me pertence.

Quanto mais vastos forem os pousares todos, mais ampla se torna a barreira que jamais poderá ser percebida pelas infindáveis crias, descendentes do “ser”.  Se, debatendo-me com tal paradoxo, alucinei-me ao tentar criar um apagamento qualquer onde supostamente não pudesse pousar olhar algum, mais confirmei minha mesma condição transgressora: Humana, e enquanto humana, presa na construção de um tudo possível.

Palavras cegas de verdades ou mentiras. Pensamentos tão vivos como mortificados: Inaugurei um apagamento e a inexistência do inexplicável.

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Malogro o intento de avançar ou de contravir sobre o que cogitei haver além – por estar contido numa grandiosidade tão vasta que sempre me fazia incorrer em novas inaugurações, todas elas condenadas nas imensidades de mim emanadas ou nos paralelismos advindos de outros centros regurgitadores de falsas origens, por grandeza imperiosa de nossos centros – , diligenciei-me em meditar nos ilimites nossos.

Ruminando com a reflexão atida na infinda e indefinida planície, onde apregoamos todas as configurações possíveis ou não, colidi com outras confusas quimeras: às luzes por nós lançadas tomam as sombras, surrupiando-lhes o direito a suas essências plenas. Assim, toda vez que parimos gêneses quaisquer, por imagens ou pensamentos, criamos uma série de contingências imprevisíveis, em decorrência da ousadia de nos pousarmos em pontos quaisquer da deformidade.

Antes de esmoer a dura crosta que abriga o cerne primata da extravagância, uma frágil ponte, tão delgada como minhas palavras débeis, estabelece-se entre mim e meu jovem ancestral.  Revista a antevéspera, à tenra balda, algo se me lembrou e que agora se assimila, em desordenação, a todo o resto de mim: o pequeno ser já se encontrava indizível na cacofonia párvula que, de seus pequenos semelhantes, ressoavam nas ruelas eneblinadas de poeira e fumaça; e nos sonhos tantos ainda não poluídos pelo claro amanhecer do dia seguinte.

Não sei se foi nesse crucial momento que ocorreu a perda da cegueira que me seria imprescindível para que se mantivesse em mim alguma sanidade confiável. Mas, da ausência incipiente da puerícia, tentando me abrigar de cacos antevindos da futura terra devastada, nos murmúrios presentes daqueles sorrisos ainda descobiçados, foi que pela primeira vez me vi quedar em assombro, na consciência nascente de que, apartado das magníficas irradiações lançadas aos ventos de todas as estações, teria que defrontar meus submundos onde, sob os negrumes de um silêncio estarrecedor, habitam plântulas umbráticas.

Se a pedra angular foi a consciência de que sou todo criações falseadas e mortes genuínas de qualquer realidade possível, não tardaria a me promiscuir com calhaus diversos, famintos e sedentos em seus orbes, com seus imbróglios nucleares.

Deste ponto inicial de visão da fraga prelúdica, com seus abantesmas de âmagos fictícios e incomensuráveis, como de tudo deles emanados incontingentemente, seguiram-se enlaces trespassados com todos os demais entre-luzes sofreados da grande dissimulação.  Entre os vales de terras fecundas a imagens, foram-me concebidas cintilações sobrepujantes e sombras esparsas: Sons harmoniosos que se incoerenciavam com suas sublimes notas; cores que se convencionavam na persuasão de seus tons; amores e dissabores sofismados, pregados aos ares em esperanças contraditórias; crenças e expectações apócrifas e dissimuladas num supremo arquiteto, escravo, como todo o resto, de nossas  demências egocêntricas; e todo o demais revelado ou segredado, nascido ou por nascer das efígies embalsamadas em suas próprias digressões oniscientes.

Reminiscências vagas se cravam a todo momento como gotas de chuva saindo às avessas de meu ser. Das lágrimas efluídas, há enchentes incutidas em vergéis promissores, contaminando-lhes fecundidades serenas com angústias incontritas. Dos suores mefíticos, imanentes da borralha humana, não há expurgação de nenhuma necrose cerniente, senão pelos vômitos injuriosos que se intermitem com espasmos de benevolências espúrias, ofertadas em sorrisos, em amores e em esperanças, que fertilizam a véspera do pisar estrépito da porvir involução, ulcerada pela dor incontida de tempestades egocêntricas que, antes de espraiar fedor por todo âmbito, condenam toda ideação palavreada, encafuada na castidade do âmago egocentrado. De mim, toda elocução é dissimulada em alvas vestes, epidemizando-se magnificências insóbrias, a refugiar ergástulos da ruína disfarçada. A mim, todo aceite da prosápia alheia, forjada em outras profundezas igualmente dissimuladas nas efêmeras luminosidades que se sonorizam em melodias burlas.

Ébrio ou néscio. Alienado. Adjetivações que não sobrepujariam o verdadeiro descalabro de meu ser, nem salvariam consciências ou inconsciências de ânimos falsetados em prenúncios que se me surgem, em dádivas ou em sanhas imbróglias, por todo percurso, com suas idioatrias embuçadas. Omitidos em códices clássicas do talho é que preterimos nossas próprias verminoses em desfrutes de deleitações e de acoimações  alheias.
 
Claustro que sou, não me considero apto a fazer alguma escolha ingênua que contemple minha órbita e meu centro adulterados no amálgama das parecenças. Impermisto e descontaminado fosse – o que não me é possível por minhas próprias aflusões –, renegar-me-ia nos incontáveis versos sinfônicos que fiz para desvirginar tantas pedras nos tantos montes que profanei; nos sempiternos amores inverazes que proferi a canduras ou a dissimulações recíprocas;  nas invocações de santos e de deuses – e de Deus – para aliviar os indícios de minhas culpabilidades; e em todas as palras por mim ditas de boa-fé, e presas a um tênue fio de perfídias dissimuladas.

Não me é mais duvidoso sequer que, quanto mais tentamos trilhar caminhos definidos com seguranças e dignidades advindas de emanações quaisquer, mais declinamos de nossas verdadeiras essências. Cada manhã com suas promessas mortas no cansaço ao fim dos dias, cada esperança abortada na angústia de pensamentos confusos, cada vivacidade fugaz desembocada em vazios irrecuperáveis, cada acorde melodioso transformado em silêncio decorrente, cada lisonja pública metamorfoseado em ânsias mudas, cada rosa ofertada com seus espinhos margeadores, e cada infinidade contida no pequeno cômodo de minha mente, tudo foi absorvido com intrepidez. A consciência de que meias luzes serpenteiam-se misteriosamente em redes vivas, latenteando obscuridades, torna-me vulnerável no único porto onde ainda pudesse sentir um alívio qualquer: meus refúgios, meus segredos revelados e minha hediondez aceita.

Sem mais caises, imerso em enxurros noturnos, contra cujas ondas buscava me fortalecer com arranjos compostos de discursos tão belos como desleais, e na busca de alguma detecção de realidade menos inexata, exclamei em gritos e máculas vencidas, meus últimos encantos fabulados à mais magnífica de minhas miragens. Não por muito tempo. Meu último suspiro culminaria em morte de concepções purificadas em qualquer coisa e em mim mesmo.  A mulher de negro esplendor, pressentida da monstruosidade que se lhe vociferava, querendo se apropriar de seu mundo, dilacerando com fulgor suas imagens e suas abstrações, cuidou de apartar e de contornar a grande nevasca, fria e mortal, com diligências angustiosas a desertos onde cintilavam oásis despercebidos, condenando-nos à harmonia fria.

Claro que ninguém deve me crer, já o disse. Se sofismo irrealidades, e delas sou refém, nem posso a mim mesmo dar algum crédito de originalidade. Ao construir paredes ou liberdades, sonhos ou descrenças, amores ou perjúrios, crenças ou ceticismos, e tudo o mais, sou criador imperfeito. E como todos, não posso passar passivamente pelo sol da tarde, rumo às sombras reais da noite. E quando mais crio ou inauguro em torno de meu orbe universal, mais me quedo em meus submundos entranhados.

Sei que outros homens, filósofos iminentes que foram ou são, intentaram se incursionar, a partir de seus próprios centros, na amplitude de um conjunto imperfeito. Ao analisarem, entretanto, já estavam predestinados à mesma falha, por queda insensível em suas próprias criações e emanações. Soubessem como influenciariam milhões de imensidades submergidas, teriam ainda mostrado suas magníficas atuações, nas quais a mente, as palavras e as harmonias ou desarmonias resplandeceram de si aos céus das eras?

Entre vários sonhos, presságios em que só eu creio, tive um em particular: Em grande tumulto, todos se apavoravam diante de uma devastação incomum. A desordem se assentava com a junção de todas as gêneses em apenas uma. Sons confusos e quebrados se misturavam originando ecos inaudíveis. Não se podia sentir um cheiro qualquer, pois todos os odores se anulavam reciprocamente. Vi, impotente, a um irmão se decompondo em dor tal que chorava rios salgados. A meu pai, um zumbi acéfalo e incapaz de reconhecer meu semblante, vi em contorces amortalhados e insentimentais, dentro da singularidade macabra. Vi quando mulheres e homens de todos os lugares e tempos abandonavam suas casas e seus filhos por não saberem mais distinguir as flores de seus próprios jardins, nem as cores de suas próprias obras-primas. Os destroços atingiam todo espectro vivo e todo espectro pelos vivos criados, de tal modo que tudo se desconfigurava, estranhamente, numa concentração que não podia ser compreendida.

Todos os germes se desarmonizavam em um só. Os sorrisos da véspera se transformavam em assombros na turbulência negra. Esperanças idas e dores presentes se uniam a caminho do mesmo destino, sem que se pudessem distinguir um do outro. Amores de homens e de deuses por eles outrora criados se aniquilavam juntamente com ódios conglomerados, de tal modo que até ágape ia se apagando na devastação. A maioria dos seres se quedava instantaneamente, estraçalhados, enquanto alguns poucos, mais ásperos, resistiam à brutal força. Não obstante, em um ponto fatal, a rampa da gênese única se inclinava verticalmente, de modo que os remanescentes mais fortes também iam se acefalando em morte lenta e angustiosa. Até que não sobrasse nenhum ser; e nenhuma coisa qualquer contemplada por ele ou dele descendente; e nenhuma figuração de qualquer tempo e época, dele advinda; esmagadas que foram, friamente, na indizibilidade da morbidade. Por fim, fui o primordial remanescente a me esvair ao inconcebível e, de mim, foram se apagando todas as luzes, quando ainda tentava recriar algo fora do centro da confusão: a mundanidade enfim havia retornado à escuridão eterna.

Despertado em sobressalto do caos onírico, pressenti, numa multidão de semelhantes, vultos ressuscitando personificações egocentradas. A normalidade insipiente me indicou que não se liberta o homem das trevas, e nem se o condena às luzes. A coabitação em ambas é intrínseca a seu poder de criar falsas originalidades, até que, atingida a convergência à fatalidade da anomalia recém-contemplada por mim, recaiam, um após outro, no abraço insolente da morte e se apaguem na incapacidade de gerar algo qualquer.

Foi não só desconcertante como angustiante sentir, sem poder explicar, por força de gênese viva que nos aprisiona a uma condição de criadores absolutos de tudo, a barreira que contém nossas infinitudes. E, sobretudo, que quando mais vemos, criamos ou inauguramos mais se assenta o declive invisível, por onde adentraremos em algum tempo do qual nada podemos supor.

E, se estando à margem da lucidez humana, foi angustioso contemplar, em mim e em todos, alucinações confusas e paradoxais emanadas de abismos cuspidores de alegorias personificadas, é-me quase insuportável me imiscuir nos entremeios das gêneses insalubres que, incapazes de perceberem a queda da grande barreira com a morte de seus pensares onipotentes, misturam, cada um a seu modo de sentir ou de conjecturar, seus amores e suas alegrias, suas dores e seus rancores, suas esperanças e suas crenças, seus anseios e seus medos, e tudo o mais de si concebidos, desabercebidos da balbúrdia insustentável que se arrasta ao frio apagamento.
 
Eu, humano: túrbido primordial.

Péricles Alves de Oliveira

 
 
 
 
 
Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent)
Enviado por Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent) em 16/03/2013
Reeditado em 19/08/2013
Código do texto: T4192095
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