ABSTRAÇÕES
 
 
     Comecei a ver esconderijos há muito tempo. Já na nascente da inocência condenada não compartilhava passivamente as blandícias da véspera dos escarros que viriam.

     Ao vento distante daquela época em que não me justificava nas brincadeiras e nos sorrisos dos ainda inviolados templos, nem nas ambiguidades dos homens que se envergavam na corrupção de seus próprios dizeres e ensinamentos, não notaram que, além das palavras primitivas que se ensaiavam para o grande e iminente aviltamento, iniciava-se em mim, tenramente, uma perdição que me levaria ao apartamento de minha alma. A um ponto, a convergência de mundos seria inevitável.

     Não sei por que contemplava, inábil e alheiamente, os vastos mundos desconhecidos, além os horizontes fechados pelos morros de minha infância. Talvez houvesse de ter, naquela imensidade dissimulada em minha mente, algo que pudesse me aliviar das visões que se me seriam reveladas, quando me aprofundasse na mística envolvida no decadente ser humano. Foi um engano que não se repetiria: os rabiscos delineadores de purezas, sonhos ou alívios quaisquer se perderiam no debater-se de egos de todos os seres.

     De fato, não tardou a se confirmar a estranheza da conjuração dissimulada. Um pouco mais de caminhada e deparei com o desconcertante poder das palavras. Assim percebi que ervas daninhas foram omitidas no magnífico plantio feito nas fontes ingênuas,  que se iam transformando em rios de águas turbulentas. 

     Foi nesse momento que quis tirar satisfação com os mais eficazes pronunciadores de falsas verdades. Tímido e ainda carregando resquícios da semeadura recente, comecei com sussurros abafados. Mas haveria de me desfigurar o rosto, vestir uma máscara para lidar com tantas máscaras, e bradar em alta voz, transformando-me num grande construtor de imagens, mediante mentiras omissas em belas pinturas e sonoras sinfonias.  
 
     Nem o grande mestre, insipiente aos olhos de todo o resto, tendo percebido no pequeno amigo o assentamento da deformidade, pôde desveredar-me do caminho sinuoso. Deuses ditos em purezas e onipotências, lendas disseminadas com amplidões falsas, sonhos e projeções exaltadas em ineficácias, vastos conhecimentos forjados, amores jurados em eternidades, e rancores trancados em crueldades, tudo seria confrontado com um vigor que não continha permissão para derrotas no cerne da aberração, onde se escondia as construções de si: fatídicas a emanações quaisquer.

     Lembro-me, dentre tantas coisas, a um encanto perdido na bravia e condenada vereda de fantasias efêmeras, de um mito que ousou me amar e me defrontar. Antes tivesse apenas amado, ou apenas defrontado. Mal sabia que a espectação mútua viria a lhe consumiria o resto do caminho até o grande penhasco, condenando ambos a mais uma grande queda em si mesmos. Todos os dias a fábula balbuciava entregas purificadas, forjadas na delicadeza de sinfônicas palavras. Em contraparte, todos os dias havia chuvas torrenciais advindas da macabridade, que lhe aplicava um veneno invisível nas veias. De ambos, foram-se sentenciados a ações mútuas e a um aniquilamento ausente, sem perceberem que em seus rios corriam angústias inconscientes: comprimidos nas margens mal delineadas havia, entre a água gélida, destroços mortais, travestidos de notáveis aparências. E ela não notou que todos que afirmam suas personalidades são reféns da representação falsificada de si mesmos.

     - Um dia, serei eu, e somente eu, quem poderá te resgatar! Grava isso nos ares dos tempos todos, pois exigirá minha morte!

     Com zelo, até intentei procurar outras possibilidades, em todos os cômodos havidos e por haverem, e por fim compreendi que a desembocadura se dá no mesmo ponto: uma chaga interna, de onde eflui todas as criações e todas as imperfeições.
 
     De fato, os andantes atemporais são indolentes no olhar e no desafio perante o abismo em que se colocam. Talvez não tenham percebido bem os monstros que abrigam em seus refúgios internos. Em toda parte do espectro, assentam-se imagens tão puras e grotescas que seus ecos sufocam qualquer essência diligenciada.

     Toda fonte é, por si, tão límpida como fecunda a tudo que lhe correrá no veio de possibilidades que se seguirão pelo leito.  O maior problema dos que se chamam humanos é que sempre deparam com outros humanos. Tais encontros não se mostram, além dos estereótipos, esvaziados de cobiças e pretensões subjetivas. Aprendi a não subestimar meus semelhantes: vistos de fora, resplandecem como um belo jardim cujas flores se desdenham magnificamente em palavras que manifestam purezas e belezas extasiantes. Além da alegoria, onde repousa a sinceridade omissa, há paradoxos profundos que não contemplam alguma perfeição moral, tantas vezes regurgitada aos ares exteriores.

     Se toda observação pressupõe queda pela visão das imagens que figuram perante os olhos e das que propagamos a todo canto e a todo tempo, devo admitir que de tudo que se surgiu e surgirá de mim e a mim permitido, sou o culpado.

     Sou anomalia indizível. Bem sei disso. Poderia dizer de outra forma, mas nunca devo ser confiável. E mentir é uma confirmação de minha natureza. Sou meu Deus morto. E sou Senhor e carrasco meu.  Se me dou ou se conquisto, se me permito ou se violo, se amo ou se me oferto a ser amado, se alço algum voo fadado à queda ou se me mantenho no rastejo do chão, escolho.

     Sim, faço escolhas. E, na imperfeição de julgamentos e de visões, todos os erros são meus. Acertos, não. Não existe isso, condenados que estamos à farsa da figuração egocêntrica. Dos erros sou detentor inalienável, embora cuspa aos versejantes inconsciências em forma de lâminas afiadas. Não obstante, sois vós todos também culpados da grande farsa que convosco coabito. E já não me apiedo de mim, nem de vós outros em vossas próprias insignes.

     Isso também aprendi ao me ofertar a mundos alheios e também deles me alimentar nos mesmos moldes e nas mesmas sombras em que todos nos sentamos para aliviar uma chama qualquer – vaga, perene e insustentável em seus bocejos pronunciados –, sabendo  que as metas de todos os sonhadores culmina na imperfeição natural de suas próprias fraquezas, não reveladas nas translucidações de seus seres. Assim foi que, em angústia – e até de minha dor devem duvidar –, vi-me impotente contra minha própria humanidade. E me percebi um inconfiável contracenante na abstração horrenda de todas as coisas vivas ou mortas.  Incapaz de ser sincero por nascença, confesso que, ao penhorar ilusões ou outras coisas quaisquer, consciente estava de que o desdouro se daria em algum cruzamento de escolhas fugazes.

Péricles Alves de Oliveira
 
Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent)
Enviado por Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent) em 28/02/2013
Reeditado em 17/08/2013
Código do texto: T4164665
Classificação de conteúdo: seguro