REVELAÇÕES
 
     Por que insisto em apontar inflamações apodrecidas e incuráveis, concentradas em clausuras abrigadas em cantos obscuros do ser e mascaradas nas figurações de vidas vãs, se de mim mesmo sou também incapaz de me ausentar e de me violar da mesma forma?

  Embora a panorâmica me seja deveras atrativa em seus delineamentos ou em suas nuances imperceptíveis, a cada vez que me aproximo de imagens quaisquer, belas ou não, que surgem à frente, deparo com espinhos pontiagudos que se cravam bem além da carne e tiram mais do que o vermelho líquido da carcaça condenada. De fato, ninguém pode me ensinar, ou sequer me dizer de algum caminho qualquer sem pedras .

     Um dia morria e uma grande noite se assentava em mim quando se me apresentaram visões estarrecedoras. Vi, em formas triviais, pétalas fazendo morada em relvas esplêndidas, abstendo-se de suas próprias e incompreendidas belezas ocultas. Vi vícios insanáveis de pássaros em cantos e em encantos angustiados. Vi caminhos forjados com belos arranjos e cores, e tropeços por entre os mistérios dos traçados. Vi sonhos pendurados ao ar; e neles, júbilo e dor, sem que se pudessem distinguir um de outro. Vi covardias vermífugas gritando consolos a carnes delineadas, que se lhes fizeram apagar qualquer ausência sentida. Vi olhares admirarem maliciosamente a libidinosidade de curvas, enquanto os lábios regurgitavam sapiências e purezas descabidas. Vi, em meio a planícies e montanhas, cadáveres futuros, com sedes insaciáveis por alívio de seus anseios inventados.

     Vi mitos e deuses tão belos e poderosos que fariam estremecer a terra. Vi demônios impiedosos e insaciáveis a esperar, de seus infernos quentes, pelo banquete onde seriam servidas nossas almas. Vi monstros bradarem seus temores em mares desconhecidos diante de jovens desbravadores. Vi fantasmas mortificados que teimavam assombrar nossas mentes em ressurreições invisíveis. Vi mais. Vi homens e mulheres de negro esplendor diante da frágil e falsa pureza ventilada de si mesmos.

     Sim, vi muita coisa da qual não sei dizer a verdade. E além de ver, entrei na dança do espetáculo transgressor. Fui chama a acender sonhos e esperanças, e fui água a apagá-los após acesos.  Prometi paraísos e depois os lancei ao deserto árido. Deixei que vissem de mim o que não fora, nem pudesse vir a ser, na avenida que se abria, pavimentada por palavras vazias.

     A tudo via e tudo me era revelado quando a noite já havia assassinado qualquer resquício do dia anterior, até que – já não bastante a sombrosidade da noite – imerso numa grande nevasca incolor e impiedosa, contemplei-me em nudez. Neste momento me senti tão só que uma dor me dilacerou em cacos pontiagudos. Vi-me um monstro sem mais habitat e percebi que os mitos, e os deuses, e os demônios, e os monstros, e os fantasmas e também os homens e as mulheres todos de negro esplendor a mim revelados eram frágeis seres, criações imperfeitas de nós mesmos. A humanidade se me sucumbiu em traças e vi-me como um canibal inespudorado, sem que pudesse poder me alçar a um bote qualquer que pudesse me aliviar a pior de todas as tormentas.

     Flutuando à nau, talvez meio ensandecido pelas revelações que me vieram ao vento da solidão noturna, e por  meus segredos infaustos outrora trancados no lugar mais longínquo de mim e agora expostos à geleira, pude perceber que mudamos a natureza em todo seu espectro e além dele, e a fazemos refém nossa, violando-a e aprisionando-a em nossas projeções de razão alienada.   Não vejo nada mais que não seja obcecadamente estuprado pelo “ser” e seu ego. Sequer nos é permitida a contemplação uma realidade nata e de suas possibilidades várias e desconhecidas. Da amplitude não percebida, apenas nos colocamos em veredas pavimentadas com imagens tantas que se tornaram hediondas. Nas arestas e contornos – de tudo – escolhidos por nós e delineados por nossas emanações oprobriosas, cometemos as piores profanações. Não se trata tais visões de um surrealismo que possa, talvez, suscitar medos ou receios, uma vez que o próprio surreal emanado do homem é também dele projeção, mas exatamente do que jamais podemos encontrar, posto que a condenação nos moldes figurados em que nos pusemos nos parece atingir de modo fatídico.

     Em conseqüência, toda percepção e toda conclusão ou julgamento advindos de nós estão condenados a falhas inevitáveis, por simplesmente não serem naturalmente puros. A parcialidade que habita o egocêntrico e leva a tais falhas nos remete a um problema com o qual não sabemos nos dar lealmente, qual seja o de poder escolher sobre nossos atos, sobre nossos pensamentos e até sobre nossos sonhos irrealizados.

     Assim, talvez seja meio assustador o fato de que ejaculamos, conscientes ou não, respingos vários, engravidando a todo momento e por toda parte os pontos e contrapontos de nossas colisões egocêntricas.
  
     E todos tememos algo qualquer que saia da contingente margem em que nos pousamos seguros, sem percebermos que estamos num encarceramento tão limitado como nosso pseudopoder, que permite nos iludirmos perante nossas espúrias emanações contidas nas fronteiras em que nos estabelecemos.

     Pelo que me ensandeço regurgitando falas incompreensíveis diante de tais visões e incapaz de me ausentar do mesmo campo árido de todos, é assim porque tudo que de nós emana, à razão descabida, a tudo toca e tudo muda, a nosso bel prazer e a nosso particular e parcial entendimento. Escondidos nossos calabouços internos, assim é desde os sentimentos mais puros por nós defendidos como princípios, até nossas efusões de fé, por alguma salvação qualquer que resguarde nossas fraquezas não assumidas.

     O ser humano, como construtor de cenários e realidades inexatas, parecemo-nos fatalmente condenados pelas imagens que criamos e que absorvemos vorazmente. A esconder nossas genialidades promíscuas, somos tendenciosamente paradoxais em nossas obras todas, às quais pintamos e observamos mediante a reflexão de nossas retinas cegas. Nada parece ilimitado para nosso desvario mascarado pela falsa compreensão. Até Deus, o onipotente e nobre criador que inventamos, como dizia Friedrich Nietzsche, já é nascituramente morto pelo simples fato de se originar de nós.  E o amor, e o ódio, e a esperança ou descrença, e todo o mais também estão fadados às mesmas quedas da barreira, estreitadas nos delicados caminhos da percepção e dos esconderijos impiedosos de onde gritamos nossas forças e nossas purezas descabidas.

      - Mais um pouco, tolere mesmo que cegamente! Isso não vai tardar a se acabar no frio esquecimento da verdade por nós violada. Silenciosamente, num ponto qualquer, não haverá mais mares, nem céus, nem cores, nem amores, nem dissabores, nem sonhos quaisquer!

     A voz da revelação me atormenta. Angustiado na nevasca austera, caminho agora nu, sabendo de mim, como de todos, algumas coisas que não posso dizer com exatidão, posto que sou também um violador da natureza morta. Sinto que não posso me abrigar à sombra intocável de um arbusto qualquer, ou exalar algum perfume insetido entre as coisas que me rodeiam, ou  emitir alguma sinfonia desconhecida a acalentar sonhos. E o pior: aprisionado nos mesmos moldes e pela mesma utopia míope,  estou, inexoravente, condenado a não percorrer espaços infinitos. 

Péricles Alves de Oliveira
Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent)
Enviado por Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent) em 20/02/2013
Reeditado em 15/07/2013
Código do texto: T4150746
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