Ícaro

"Um dia perguntaram-me qual era o meu maior sonho.

Eu respondi com a certeza de quem fala o óbvio:

- Perder as minhas asas.

Olharam-me assustados, pareciam não crer que eu quisera lançar fora minhas penugens alvas e longínquas, para eles tão lindas.

Mas como eu poderia querê-las? Eram muito pesadas e faziam doer o que sobrara das minhas costas. Não queria asas.

Era horrível voar sozinha... O céu era infinitamente maior do que os ínfimos pedestres imaginam. O vento é frio. O sol é muito quente. Os ares exalam solidão.

O que para muitos era um dádiva dos deuses, para mim era uma penitência. Malditas asas que elevavam-me a lugares que só eu podia ir. Asas mortíferas que isolavam-me e faziam de mim prisioneiras da imensidão e possuidora de mim mesma.

Deprimi-me e amarrei as bases das minhas penas na tentativa de atrofia-las. As malditas eram fortes o suficiente para regenerar a cada mutilação. Para descarta-las, não voava mais. Isolava-me na esperança que o desuso as desfizesse. Eu estava certa. Alados não sobrevivem à ferrugem do abandono. Elas atrofiaram e certa manhã cinzenta elas não me pertenciam mais".