Quando a Vida é um Copo

Aquela madrugada insone. Mesmo depois de maconha. Depois de cerveja, pizza, banho gelado. Depois de lamber feito louco um sedativo partido ao meio. Depois de um sexo maneta bem feito. Ventilador na cara, garrafa de dois litros de água secando conforme os ponteiros do relógio aumentam as horas e recrudescem o tempo e a bexiga incha e as pestanas pesam. Nada de dormir. Nada de dormir é quando o nada é tudo. Tudo. Onde começa o holograma com as miríades de desculpas que eu te dei para os nossos impasses, impasses causados pelos meus desleixos; onde começam as espetadas de dor de estômago causadas pelo engulho que sinto de mim. Além de engulhos também sinto saudades: saudades de mim. Saudades de sentir saudades. Saudades de esperar algo que poderia vir e não veio. Se você lê isso com aflição por estar inserida entre palavras que não têm sentido, dê-se ao luxo da empatia e mergulhe no não-ser que tenho sido. Uma porra de Ariadne soltou um novelo de lã num labirinto dentro de mim; segui-o; embolei-o; me perdi. O que restou foi algo que, sendo bem costurado, embolado, fortificado, pode gerar uma boa forca, um bom garrote. Ah, a sedução! Tem noção do quão sedutor é o pensamento da possibilidade de parar de pensar? Encare como fuga, sim, algo que encaro como fogo. A mais mordaz vontade de viver reside da mais mendaz vontade de dar cabo da vida. Ai, caralho, do que estou falando? Sempre desemboco onde a dor de existir me cala a boca. Sempre. Sempre me faltam palavras onde elas são mais abundantes. Sempre. Sempre há escassez do verbo quando grito, grito até arranhar a glote, até arder os pulmões; esse grito silencioso que regurgito e cuspo no cu que me é emendado à boca. E me mortifico na embolia da palavra presa que sucede outra e outra e outra. E tenho que viver trancado no ossuário do meu próprio corpo? Isso lá é vida? "Corrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrpo" - sinta como o ar/R vibra entre a língua e o céu da boca. É quando a vida é um copo.

29/12/2012 - 04h13m

Milo Greene - Son My Son

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 29/12/2012
Reeditado em 29/12/2012
Código do texto: T4058136
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