SOBRE PONTES E HOMENS

Meus amigos teístas fazem-me, sempre que aparece a oportunidade, o seguinte questionamento: Mas um mundo sem Deus perderia o sentido, as pessoas ficariam sem um sentido para viver. Era o tipo de questão que eu tinha dificuldade em responder e acabava por aceitar a necessidade do homem acreditar em um ser superior. Hoje penso um pouco diferente: há, sim, no homem uma necessidade, mas esta não se reduz em acreditar na existência de um ser superior (ou seres superiores). Esse é um caso particular desse tipo de necessidade. Qual necessidade seria esta? Ora, a necessidade de a vida ter um sentido, da própria existência ter um sentido. Acabei que voltando para o início, embora com nova bagagem (embora saiba que não se trata de roupas novas, são antes roupas usadas).

Reconheço que umas das razões de existir das religiões é o de mostrar ao homem um caminho a seguir, de fornecer-lhe sentido a sua vida. Mas será esse o único modo de dar sentido à vida? E caso existam outros modos, será esse o mais elevado e de melhor qualidade? Certamente que não. Penso que a qualidade é um aspecto importante dessa questão, senão o mais importante. Façamos dela o divisor de águas entre os vários modos que o homem possa encontrar para dar sentido a vida.

A religião costuma, sim, fornecer elementos para se construir um sentido para a vida. Mas o que significa afinal: “dar sentido à vida?”. Não há respostas definitivas, entretanto costumo problematizar a questão com uma metáfora, nem sei se boa. Para mim serve. Então para ao menos uma pessoa faz sentido. Vamos a ela: Imagine o caos (e cada um pode ter uma visão diferente do que seja caos), podemos tomar como “dar sentido a vida”, a tentativa (muitas vezes vã, alias, em ultima analise, sempre vã) de dar ordem ao caos, ao menos localmente. Uma ponte sobre o caos – essa é minha metáfora. De que é feita a ponte, para onde leva a ponte? Ai, entra o aspecto da qualidade.

Se tomarmos uma religião em particular, podemos elencar os elementos ou materiais que são usados na construção da ponte. Não vou fazer isso aqui, nem saberia por onde começar. Mas aceitem, por um instante, a minha metáfora e tomem uma religião qualquer (na verdade um sistema de crenças qualquer) e procurem os elementos dentro desta religião que são dados com o propósito de dar um sentido à vida – esses são os “tijolos” usados na construção dessa ponte em particular. Mas quão boa é uma ponte, por quanto tempo durará, quantas pessoas conduzirá e, finalmente, para onde as conduzirá? Eis novamente o problema da qualidade, agora formulado em todos os seus aspectos.

A religião costuma construir pontes gigantescas, para conduzir multidões, seus tijolos são esperanças, sonhos e promessas de uma vida melhor, de uma vida eterna. Essas colossais pontes levam ao “Eterno” – religiões específicas darão nomes específicos ao “Eterno”: Céu, Valhala, Nirvana...

O homem que decide abandonar a sua religião, aquela em que até então acreditou, verá a ponte sumir sob os seus pés e incontinenti cairá no abismo. Somente sendo um imbecil para, desapercebido, lançar-se no abismo. Quem abandonará uma ponte sobre o abismo, antes de construir outra? Somente um suicida. Ora, o que aconteceu comigo foi que a ponte em que caminhava não servia para mim. Primeiro os transeuntes: uma massa disforme de zumbis e escravos caminhando sem questionar. Depois o destino, o propósito. Que destino? Não conseguia ver o fim da ponte, pois este estava coberto por espessa névoa.

Construí então minha ponte – não do dia parta a noite, nem da noite para o dia. Com que material? Ora, com o material do próprio caos, não há nada melhor! Construí a minha ponte sobre o caos a partir do próprio caos, não neguei o caos, não procurei materiais transcendentes, etéreos e eternos. Busquei o fugaz, senti a terra, construí com lama e pedra! E quando terminei a ponte? Não terminei...

Não fiques com pena de mim, tu olhando de tua majestosa ponte o patético homem, que tenta terminar uma ponte sem fim. Mas me respondas: Quem construiu a ponte da qual me olhas? Certamente não tu.

Quantos suporta a minha ponte? Essa ponte aqui somente suporta meu corpo, não tentem usá-la – ela certamente desabaria conosco sobre o abismo. Cada um que construa a tua própria ponte. Mas isso não seria egoísmo? Não, seria antes, autoconhecimento: somente te conhecendo para construir a tua própria ponte. Durante a construção percebe-se o outro, percebe-se do que é feito o outro e percebe-se que a tua ponte não serviria para outrem, somente para ti – um homem, uma ponte.

Para onde levará essa frágil ponte, construída por e para apenas um homem e jamais concluída? Não levará a lugar algum! Um dia terminara por cair sobre o caos – seus elementos voltarão a pertencer ao caos. Na verdade nunca deixaram de pertencer ao caos. A ordem transitória é uma luta perdida. Faz-se necessária a luta, mesmo sabendo que não se vencerá. Faz-se necessária a luta, por ser ela o próprio sentido da vida.

“Então, tu estás sobre uma ponte, ou fragmentos inacabados de uma ponte, nunca por terminar, que somente suporta o teu peso, que não conduz ou conduzirá a lugar algum e que um dia se desabará sobre o abismo sendo por ele assimilada – e queres me convencer a abandonar essa ponte sólida, construída por homens mais capazes que nós próprios e que me conduzirá ao Eterno?” É pedir muito? Espero que não. Como afinal vai te conhecer sem construir a tua própria ponte? E como vai conhecer o outro? Pois se cada um caminha sobre uma ponte que não é sua, qual o significado de olhar para o lado e perceber o outro? O que o outro fez para ser percebido? O outro não esta a competir contigo? O seu sucesso não lhe causa inveja, ou vice-versa?

“Qual a vantagem desta ponte única?” Não percebes? Se não percebeste até aqui que continue a tua caminhada sobre pontes alheias. Ao tocar o caos, ao retirar do caos os tijolos que dariam forma à ponte não estarei dando sentido a minha vida? No final, a construção da ponte era apenas uma meta, uma desculpa para brincarmos e trabalharmos com o, para o e no caos. Para conhecê-lo e reconhecer nele nossa própria natureza: percebermos que somos construídos pelos elementos do caos e negá-lo seria negar a nossa própria existência. Quem quer manter-se limpo? Quem lavará as mãos? Quem quer viver uma vida asséptica como se o mundo fosse um shopping center? Sejamos homens e mulheres, construamos nossas próprias pontes, assumamos nossos erros, mereçamos nossas vitórias e retornemos felizes e maduros ao seio do caos. Somente assim a nossa vida terá feito sentido. Sejamos a nossa própria ponte.

Luciano Moreno
Enviado por Luciano Moreno em 24/12/2012
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