FATALIDADE
 
Onde há luz senão as emanadas de sombras próprias e projetadas falsamente, a fim de dar contornos irregulares, por nossa visão cega, a nossos desejos e a nossas idealizações utópicas?
 
Há uma grande diferença das relações entre si das coisas no mundo por nós vistas e em como lidamos com elas. Ou ainda em como nos colocamos em meio a elas, mormente entonizadas com subjetividades invisíveis de nós mesmos. De fato, a luz do mundo vista por nós todos serve apenas para que construamos magníficos ou decadentes cenários, mas nenhum correspondente a alguma verdade confiável.
 
Se ousamos tentar nos desmitificar e expor nossas entranhas, ofertando nossas fraquezas e deixando transparecer nossas quedas e nossos monstros terríveis, muitas vezes escondidos atrás de sorrisos, provocamos nossa morte de dois modos: A condenação das coisas a nós imposta e a nossa autocondenação, esta de modo vigoroso. O julgamento é silencioso: o verdadeiro e mais impiedoso carrasco só pode ser o que se conhece a si próprio.
 
Não se poderia concluir que a luz, em vez de nos fazer ver, cega-nos, se ao dia parece ser exatamente impossível algum ser se transformar em algo totalmente crédulo? A lua serve apenas a poetas e sonhadores, assim como os sentidos servem aos vermes que se alimentam dos prazeres e das dores em acusações e suposições de todos, exceto de nós mesmos.
 
Deveríamos poder escolher entre navegar por mares com ondas bravias ou nos ancorar em caises protetores. Por que não o fazemos? Somos intrinsecamente nosso próprio cais. Temos nossos próprios escudos contra as marés que se rebelam ou se lançam contra nós. Matamos, mas não morremos em nossos constructos interiores.
 
Mar bravio! A dor é dilacerante quando nos vemos nele, entre as tempestades que nos assolam e nos fazem mergulhar profundamente ao que sempre nos negamos aceitar: nossa condição miserável e ultrajante.
 
Não se trata apenas de um freudianismo apregoado, mas de atos covardes emanados do ancoradouro. Devíamos nos remeter à vista panorâmica de tudo e de todas as coisas e nos acautelar para onde iremos pousar nossos anseios? Eis-nos, couraça protetora de nós próprios, sob o medo de ondas engolideiras do mundo ou, na verdade, de nós mesmos perante elas, em reações abismais.
 
De mim, seria bom é navegar no vácuo sem sequer haver algum ar para que eu pudesse tragar e, com a oxigenação aliviosa da mente, cuspir palavras desordenadas e insanas. Nunca fui sequer razoável – assumo – a náufragos, a deuses ou a homens que se aproximem demasiadamente: tenho um sentido de proteção ainda maior e mortífero, e meus vômitos sufocam qualquer canto ou visão que diste de meu mundo hipócrita.
 
Sim, assumo o monstro meu. Deixo o andar tão somente a cargo do destino ou do espelho. E sou o destino falso e sou também o espelho de falso reflexo.
 
Sobre os sentimentos, que se enlouqueçam perante eles.

Que se os questionem, pois nunca se podem os supor de algum modo qualquer além de uma fé cega ou de uma boa-fé inexistente.

Que se os dividam com demais seres e coisas em tresloucuras omissas.
 
Que se os continuem buscando nos ares da superfície ou do cais, fugindo ao mergulho fatal em si mesmos.
 
Que se insanem todos ou se extasiem com a dor que acompanha o conjunto das emoções concentradas na perversidade – até amar é perverso, pois traz à sua esteira seus irmãos obesos.
 
Que se desviem do mundo, condenando-o nos esposos, e nos amantes, e nos amigos, e nos pais, e nas mães, e nos filhos, e nos outros seres e coisas a se apontarem pelo caminho.
 
Pois da água do vale em que habitamos, mesmo contaminada, deveríamos beber sem imaginar outra fonte mais pura do estar ou do porvir idealista entre tudo que houve, há e houver. Sim, deveríamos beber de nossa fonte impura sem a lançar ao mundo.
 
Mas nos negamos nosso trago amargo e residimos em nossos caises resguardadores, onde trancamos nossas sombras nefastas em pseudossegurança, e onde assentamos nossas dores, e nossos amores em nós vitimados, à mercê de condenações alheias.
 
Da planície onde muitas vezes frequento, desertificada, avisto algo que considero um amigo. Raridade de meu olhar. Um velho analfabeto com quem aprendi (ou desaprendi) mais do que com todos os filósofos que li. Lembro-me de carregar a alça da caixa mortífera em que dormia e de o depositar à terra no derradeiro sono. E lembro-me da frase pronunciada pelo moribundo poucos dias antes de sua partida: “Não chorem por mim, não vale a pena!”

Eu entendi, amigo, pois o choro também é a hipocrisia travestida de dor. Não supre nem justifica por si as entranhas tuas, nem as dos observadores de tua morte.
 
Nem meu choro silencioso me justifica. Nem as dores, nem os pseudoamores, nem as lindas cores e os almiscarados cheiros. Nem os nefastos atos. Nem as trancafiadas aberrações. Sou como tu, injustificável em todos os sentidos, perante mim mesmo e perante os seres e as coisas do mundo.
 
Às vezes me esqueço da inatingilibidade do que sequer ouso pensar. Não me escapo do mundo. Abandono-me a ele. E nele sou verme.
 
Sim, eu me assumo hoje perante todos que possam ler. E que propaguem a todos que possam se aproximar. Verme sou. Rastejo.
 
E as ruas e avenidas do mundo meu convergem em uma imensa rampa com escadas longas que se verticalizam cada vez mais rumo ao vazio. Os que supostamente amo, e os que supostamente não amo, e também os de mim desconhecidos, nelas, escorregam-se sôfregos.

E não me predisponho confiável a carregá-los pela grande rampa verticalizada.

Cansado e imundo, nem deveria ousar me suportar a mim mesmo.

E, assim, tão somente luto por motivo e objetivo algum, e suo prostrado.

E vermífugo que sou, cuspo e escarro por toda a parte.



Péricles Alves de Oliveira
Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent)
Enviado por Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent) em 14/12/2012
Reeditado em 14/12/2012
Código do texto: T4035946
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