Meu Inventário
O tempo passou no carteado da minha vida, e hoje já vai alto o tempo que me trouxe as respostas a tudo o que busquei espontaneamente ou que me foi trazido pela força esmagadora do universo.
Ainda me lembro quando tentava erquer minha vida pautada nos valores a que todos estimam com a alma fervorosa: O Deus Cristão, a família, o amor, a prática irrestrita do bem, a conduta sociomoral: foi em vão!
O tempo que me trouxe as ilusões foi o mesmo que se compadeceu e me doou uma luz iridiscente de respostas sem fim: hoje sou um labirinto com saídas.
O Deus cristão ficou nas igrejas e templos onde vi os sacerdotes pregarem o evangelho da luxúria e da vaidade, alimentando seus súditos obscurecidos de alimento podre e corrompido pela má intenção: era uma grande farsa.
A família caiu quando meu genitor me abandonou aos três anos de idade a mercê da sorte cruel que iria ferir eternamente de vazio aquele garotinho de olhos verdes que eu era, e mais tarde, na adolescência, quando minha genitora me largou perambulando pelas ruas de uma capital, por meses, pedindo comida, abrigo, dormindo nas calçadas congeladas da madrugada, implorando que a sorte não me deixasse ser morto por alguém durante o sono. Mas não sofri sozinho, todos os meus irmãos também padeceram, os seis, cada qual a sua forma e ao seu tempo.
O amor romântico, tão exaltado na arte de modo geral, morreu ainda no seu broto, quando pensava emergir. Foi nesse tempo que desacreditei do amor e vi o que tenho por certo: nenhum amor é tão puro que não possa contaminar o amante a ponto de fazê-lo matar o amado durante o sono da noite. E mais: o amor e o ódio se abraçam num disfarce que encobre os mortais com o manto do engano. Sim, sou um tanto pessimista neste ponto.
A prática irrestrita do bem ficou pra trás quando comecei a viver uma vida toda ruim, e quando vi que o bem que me davam era sucateado e cínico, era um bem mal, e disso falaram meus mestres, Nietzsche e Schouopenhauer.
O mal não está somente em toda parte, mas também dentro de nós. Como costumo afirmar: o bem é uma espécie interesseira do mal. Pratico o bem, mas olhando, sim, muito bem a quem, salvo quando envolvido por Ogum, meu pai.
A conduta sociomoral, tão aplaudida pela humanidade também é fajuta, e parei de admirá-la quando vi no espelho da história o sangue sendo derramado por quem devia prezar a moral: quem cometeu as maiores atrocidades na história foi o "Deus Cristão" (entenda como referência a Igreja Católica Romana), não à toa que alguns afirmam ser a Bíblia um livro de sangue, e esta assertiva é correta, como Teólogo, epigrafo.
Mas calma, não estou revoltado nesta aurora da minha vida, estou sóbrio e com mais vontade de viver essa vida de mistérios, onde o sentido da existência só pode ser encontrado dentro de nós, por isso, nesta hora, deixo meu inventário aos questionamentos e elementos que protagonizaram minha juventude, que já vai se apagando.
MEU INVENTÁRIO
À Deus eu deixo a minha fé, que começa primariamente no meu entendimento racional e depois se estende ao cosmos.
À minha família eu deixo o eterno abraço finito das vezes em que estamos juntos e nos amamos no olhar, certos de que o que deu errado ficou pra trás, e nós caminhamos para frente, embora a memória nos dê sobriedade.
Ao amor romântico eu deixo a minha certeza de que todo romantismo é válido no romance, mas na maioria das vezes este não é a vida real, por isso asserto: amo com a mesma sinceridade a que odeio.
Aos que tem a expectativa de ser eu o mentor de um bem fraterno contínuo e incondicional eu deixo a minha contra-expectativa de ser eu a qualquer momento vítima de uma mal eterno absurdo, logo, não tenham tantas (des) esperanças.
A exigência sociomoral da sociedade eu deixo a minha insubordinação pessoal de viver preso as regras da sociedade, mas liberto na minha abstração, que carrega a certeza de que me avizinhei de algo melhor, que não é o que é vendido em frascos sujos nas esquinas da coletividade.
O tempo que me trouxe os questionamentos também me moldou de acordo com as minhas certezas, e hoje sou bem melhor do que imaginou o agoureiro divino e iluminado, pois viver livre na essência é sempre a melhor das reações a quem já chorou lágrimas de sangue, mas que hoje samba sobre elas.
Hoje eu tenho algo a afirmar: "eu canto a dor que eu não soube chorar".