Com emoção e razão
Como principal representante da visão dualista do problema mente-corpo, consideramos o raciocínio de René Descartes, porque a relação entre o corpo e a alma foi a segunda questão que mais ocupou sua atenção.
“Descartes pode, então, tomar como ponto de partida o fato de que existem duas formas distintas de realidade, ou duas substâncias: pensamento ou alma, consciência pura que não ocupa lugar no espaço e, portanto, não pode ser decomposta em unidades menores; a matéria é só extensão que ocupa lugar no espaço, mas não possui consciência. (...) O pensamento é livre na sua relação com a matéria, e vice-versa: os processos materiais também operam de forma totalmente independente. Descartes considera o corpo humano o resultado de uma mecânica arrojada. Tecnologia de ponta, como diríamos hoje. Mas o homem possui também uma alma capaz de operar independentemente de seu corpo. Os processos do corpo não possuem tal liberdade, pois obedecem às suas próprias leis. Mas aquilo que percebemos com nossa razão não acontece no corpo, e sim na alma, na mente, independentemente da realidade material. (...) Desta forma, o pensamento pode se elevar para além das necessidades do corpo e se comportar ‘racionalmente’. Deste ponto de vista, a alma é totalmente independente do corpo. (...) Pois a razão não envelhece nem se debilita. Nosso corpo, ao contrário, sim. Para Descartes, a alma é a própria razão. Os afetos e sensações menos elevados, tais como desejo e ódio, estão intimamente ligados às funções do corpo e, portanto, a uma realidade material. (...) O motivo desta comparação é o fato de que na época de Descartes as pessoas estavam totalmente fascinadas pelas máquinas e pelas engrenagens dos relógios, que pareciam funcionar sozinhos. (...) Só que é claro que o fato de elas funcionarem por si mesmas não passavam de uma ilusão.” (O Mundo de Sophia, Jostein Gaarder).
A partir disto pergunto-me se não seria resquício do raciocínio cartesiano nos dividirmos entre razão e emoção, cabeça e coração, para pensarmos nossas escolhas. Porquanto podemos justificar através da razão as emoções e os sentimentos que obviamente não podemos evitar. Somos uma extensa porta de entrada para captar estímulos exteriores que operam em nossa mente, desencadeando alguma resposta. Entretanto, podemos ainda refletir a forma como nossa mente recebeu um dado estímulo, para então, dependendo da circunstância, reagirmos eficientemente, às vezes não. O tempo de reação, ou medida de latência, varia de um indivíduo a outro, creio também que de acordo com a situação.
Penso que este vestígio dualista de perceber nossos conflitos interiores, esteja mais relacionado a algum mecanismo de defesa, sobretudo a negação, a fim de preservar a realidade que esperamos. Recalcamos, assim, no inconsciente toda a energia desencadeada por um dado estímulo sobre o qual negamos ou ignoramos existir, sempre que atingir a realidade que construímos. Tendemos a perceber como um desequilíbrio interior quando isolamos a cabeça do coração e vice-versa, dando vazão a dúvidas, uma vez que o problema depende da harmonia entre cabeça e coração. Ora se estes operam conjuntamente, às vezes somos nós que não queremos admitir isto porque tememos algo ruim posterior à aceitação que cabeça e coração estão em harmonia. Evidentemente que o que nos segura e barra são as expectativas, as representações, os constructos sociais, tudo aquilo que nossa mente assimila como seu e que, infelizmente, nos faz perceber como uma discordância entre cabeça e coração.
Faz-me lembrar: “Aprendi que a gente nasce livre, original, criativo, amoroso. Mas não independente. E, devido à nossa dependência dos adultos, somos manipulados e moldados por eles de acordo com o sistema de crenças e de padrões que eles também receberam dos seus pais, da religião, da mídia, do mundo enfim. E ai de quem tenta escapar desse sistema. Perde o carinho dos pais, o respeito dos amigos, quando não ganha um castigo. Desde criança aprendemos que a liberdade tem um preço e que ser diferente dos outros pode nos custar o isolamento. Felizmente, chega o dia em que o ser humano sente saudades do seu eu verdadeiro. O encontro solitário consegue mesmo, o seu próprio deserto. Ninguém sai de um padrão pelo discurso. É preciso mexer com a emoção, tocar os limites do corpo, limpar de cada célula a memória daquele comportamento”. (Feche os Olhos e Veja, de Izabel Telles).
Portanto, creio que ‘se aceitamos as coisas do coração como da cabeça, e as da cabeça como do coração’, nos fortalecemos para desafiar a realidade exterior e preservamos a harmonia interior. A aceitação, aliás, não implica necessariamente na concretização daquilo que nossa cabeça e coração, em equilíbrio, almejam; protege, porém, de um desequilíbrio interior por conflitar razão com emoção.