Abstrato
Estava andando sem rumo. Ela passa ao meu lado, quase que não a vejo. Não costumo notá-la. A maioria, mesmo que sem perceber, a vê com olhos submissos; os maiores homens se concretizam graças ao que ela lhes entrega no silêncio de uma noite mal-dormida, porém gostosa: os dois se encontram, e, mesmo sendo ela intocável, senti-la preencher-te é suficiente para alcançar a glória, a glória que todos buscam, inconscientemente, cada qual a seu modo de ver. Mas eu não. Eu me recuso a aceitá-la. Teimosia, sim. Admito, pois, que me dependo dela, por completo. Se não fosse pela sua existência, tão pouco seria a minha. E ela me persegue, sempre! Tenta desviar-me de meus caminhos, roubar-me minha virtude, destruir meus princípios. E por vezes, consegue. Por vezes, seus encantos tão concretos me convencem. É persuasiva, tem sempre razão. E ainda bem, que se não o fosse, estaríamos todos perdidos, sem rumo, como eu mesmo me encontro agora; fico assim sempre, correndo, me arrastando, até quando ela me seqüestra de meus sonhos tão profundos, tão saborosos e doídos, tão, na verdade mais pura, masoquistas, pois por minha escolha eu os vivo, e os vivo de maneira prazerosa, mesmo com tantas feridas que me causam. E, quando ela me faz acordar, o choro sentido da verdade me consome, é engasgado. Liberta, sem dúvidas, desses sonhos abstratos. Mas, com licença, quem é que lhe concede permissão para fazê-lo? Repito, então: eu os gosto! O que poderia eu fazer, estando certa? Eu lhe responderia que certeza não é minha base! Pelo contrário: se fosse por vontade dela, estaria eu, morto, simplesmente. Dizimado pelo que está correto. Morto como todos estão, condição da qual nenhum a escapa. Caso notou, a ironia é constante em minha ignorante e deliciosa essência: o mesmo que me sustenta me apunhala pelas costas. Sem ela não existo, com ela me desprezam. Continuo, contudo, a andar sem rumo. Em busca dos que preferem não vê-la, como eu mesmo o busco fazer, seriam esses os que, fielmente, ou nem tanto, me seguem: os que ainda são tão teimosos quanto eu mesmo, os que se valem mais de um suspiro ou d’uma lágrima do que de uma palavra que lhes revele a realidade.