Livro do tempo

O Sol – Primeira perspectiva

Eu já não via mais a luz do sol. Nos últimos dias minha atenção estava imersa em tantas questões, sentimentos, medos, desejos, compromissos, que já não olhava para cima, nem para frente, nem para qualquer parte da dimensão espaço-temporal, mas para um universo paralelo. Se a integridade de meu corpo esteve livre de acidentes e outros perigos durante essa ausência, foi somente o instinto e a rotina rígida de meus dias ou a Providência que me protegeram. Deus sabe. Acrescento a isso o fato de os últimos dias estarem encobertos de nuvens cinzas, e o mesmo estar acontecendo em minha mente.

Brumas de fantasias, sentimentos e pensamentos incontroláveis se espalhavam por toda parte, porém, aqui e ali, um feixe de inteligência passava por alguma fenda dessa obscuridade toda e dissipava, temporariamente, esses grossos blocos que pairavam sobre meu espírito. Entretanto, todas as partes daquela névoa mental voltavam se reunir, tal como num soco que se acerta na água abrindo nela um espaço efêmero. Essas brumas estão sempre assediando e tolhendo minha subida à confiança íntima. Isso enfraquece o corpo, míngua o animo interior, tudo fica sem sentido e você acredita ser a pior criatura, sente-se muito vulnerável. Muitos elementos desse submundo parecem tomar a forma de pessoas conhecidas, que me acusam de tudo. São apenas fantasmas que se apegam a imagens da memória, se vestem delas e criam personalidade própria. Às vezes confundo esses seres impostores com as pessoas de cuja imagem se travestem, e, me afundando nesse mundo miserável e lodoso, me torno um grande perseguidor mental de pessoas reais. Passados alguns dias um golpe de luz solar acertou minha vista e me arrebatou daquele mundo subterrâneo, de atmosfera tosca e cinza, no qual vivia enclausurado.

Os dias nublados de nossa cidade sempre contribuem para esse sentimento de ter uma visão turva das coisas.

Confesso que muitas vezes busco esse mundo tosco em mim como uma espécie de refúgio, onde posso me iludir e sentir-me inocente, como que envolto em transtornos que me perseguem, e por isso posso imaginariamente fugir da responsabilidade de certos hábitos meus, ou seja, saio da realidade, que acuso de me perseguir, e me escondo numa zona infernal, cheia de armadilhas e imagens falsas, traiçoeiras. Isso acontece algumas vezes por sentir-me, indevidamente, uma vítima de coisas da vida, um ser inocente atormentado injustamente pela verdade. Até que uma força angelical me puxa pelo cangote, me suspende desse poço sombrio, e me solta bem no centro de todas as minhas responsabilidades e compromissos, e a verdade vai me acolher, me salvar e mostrar meu lugar no mundo. Esses buracos inóspitos da alma só Deus sabe o que são. Não criamos essas entradas, vem no pacote, e é melhor não penetrar nelas senão a cabeça, até que nossos ombros interrompam nosso impulso travando nossa passagem por esses lugares estreitos e imprevisíveis. Estreitar-se demais nesses recônditos pode ser um caminho sem volta.

A manhã – Retorno inevitável

Levantei-me cedo. Inverno, frio, chuva. Não quero pensar em nada desagradável, mas, já que não gosto de levantar cedo demais, acabo transformando qualquer pensamento agradável em algo desagradável, ruim, perseguidor. Culpa minha. Um sentimento de culpa sempre sai de seu buraco, nesse horário, e como um predador ataca direto a consciência.

Não sei até que ponto os sentimentos de culpa são reais, quer dizer... como não prestar atenção em meus atos e não julgá-los? Eu sinto que agi de maneira errada em tal situação, fui covarde em outra, grosseiro em mais outras, percebi que cometi um erro evidente, eu fui estúpido com minha esposa, com minha filha, ainda sou, julguei mal uma pessoa que nem conheço, desconfiei várias e várias vezes de meus amigos, meus parentes, lhes atribui intenções ruins, alimentei vinganças imaginárias e morais contra palavras e gestos sinceros sobre mim, e tudo isso muitas vezes acaba mal dentro de mim. São uma porção de maldades íntimas, a incapacidade momentânea de compreender a verdade gera maldade mais que momentânea, é como um ramo duma árvore venenosa, plantada, ou surgida, numa região de meu mundo. Muitas vezes colho desses frutos para me embriagar em minha própria corrupção. Uma poção maligna de desejos ruins borbulha oculta e fora de controle em alguma parte desse meu universo, solta vapores que turvam a luz a sempre presente, porém nem sempre percebida.

Mas, qual é o ponto onde esses mesmos sentimentos e percepções verdadeiras são distorcidos e transformados num tremendo algoz que me acusa por qualquer pensamento ou sentimento mínimo? O ponto onde há um equilíbrio perfeito disso me escapa quase sempre. Parece que o aprendiz do diabo está fazendo sua ronda, tal como nas histórias de C.S.Lewis.

É chato se dar conta de que o descanso é pouco para muita gente. Um sociopata pode dormir tranquilamente depois de destruir alguém, mas eu já não descanso tão bem se sei que deixei de fazer algo que devia ter feito, ou perdi a paciência com o gato porque derrubou uma porção de livros da estante. Minha vontade era de chutá-lo com força. Nunca puni muito severamente nossos bichinhos lá em casa, mas me puno severamente por me esquecer de sua natureza e atribuir intenções a eles. Os bichos não vacilam, sabem o que precisam e descansam muito bem. Enfim, o início do dia me faz sempre colocar em movimento meu exército mental que, com muita dificuldade, contém a torrente de inimigos e agitadores caóticos bem lá dentro, vindos não para acabar com meu sossego, mas para causar um desconforto maior do que o necessário.

Não existe apenas um Castelo Interior, como escreveu Santa Tereza do Menino Jesus. Há também uma montanha alta, fria, sombria, inóspita, cheia de partes íngremes, pedras pontudas, caminhos estreitos nas partes altas, avalanches de gelo, buracos traiçoeiros, ventos fortes por ali se encanam derrubando tudo e pondo tudo a perder. Por dentro está infestada de Gnomos, Trolls, e outras criaturas terríveis que cavam fundo para o coração da montanha e ali se instalam prontas para agir, muitas vezes em conjunto, agitando ou até destruindo os fundamentos do ser. É preciso, e é mesmo necessário construir um Castelo Interior para dar ordem humana a esse mundo, estabelecer limites a esse vale perigoso, pois, não dá para destruí-lo, entretanto é possível controlá-lo, reduzi-lo um pouco, torná-lo respeitoso às coisas supremas.