Céu e Inferno


Os sinos do inferno nunca bateram, bem como os dos céus nunca soaram. Céu e inferno são alegorias criadas pela nossa própria subjetividade de perceber e não compreender a complexidade da natureza, em especial ao longo dos muitos e muitos séculos e milênios, em que meros trovões, terremotos, temporais, furacões, tufões, atividades vulcânicas e gêiseres, entre outras maravilhosas e poderosas interações da natureza nos impunham medo e total desconhecimento. A simples chuva, as nuvens, a beleza natural dos seres vivos, sua variedade e complexidade, diferentes doenças (desconhecia-se a até pouco tempo as bactérias e os vírus), o nascer e por do sol e da lua, as marés, as ondas do mar, o vento, o fogo, as estrelas no céu e por ai a fora, eram milagres e que necessitavam de causas, e que somente deuses ou demônios poderiam justifica-los, daí para um céu e um inferno foi um pulo. Nossa mente nos quase obriga a encontrarmos causas para tudo. A fatalidade e a aleatoriedade são difíceis de serem aceitas e entendidas pela nossa mente, quanto mais os eventos não intuitivos ou incertos.
 
Como é livre a águia para voar, nós deveríamos ser libertos para caminhar física e mentalmente, e para vivermos a vida em sua essência biológica, e no nosso caso, de forma humana e social. Somos livres para buscarmos o conhecimento.
 
Por quase toda nossa existência, a essência da natureza, e sua realidade profunda e imanente foi totalmente opaca ao nosso observar, e a nossa busca por algum conhecimento. A natureza existia, como nós existíamos, e quase nada dela em essência e em verdade conhecíamos, não éramos capazes de entende-la em seu interior, mal a concebíamos como simples representação de algo, como se mágica fosse, ou projetada e controlada por algo externo e superior fosse. Víamo-nos como simples marionetes no complexo existir da natureza. Aos poucos, nos últimos séculos, a natureza foi tornando-se perscrutável, transparente e inteligível  a nossa busca de conhecimento.
 
Hoje conhecemos bem mais do que ontem, e assim o conhecimento se acumula e se transforma, nos transformando. Hoje já conhecemos um pouquinho dela. Se não a conhecemos em toda a sua essência e extensão, em toda a sua imanente realidade, a conhecemos por refutações e por conceitos. A natureza, no fundo, para nossa realidade mental, tem se mostrado muito mais estranha do que qualquer um de nós poderia imaginar. Ela é não intuitiva em muitos casos, é muito intrigante em sua essência. Hoje já demos muitos passos no conhecer e no refutar nossa natural natureza, seja ela física, biológica ou mental. Faltam muitos passos a serem dados ainda, talvez infinitos. A ciência nos tem permitido, aos poucos, com avanços e retornos, com provas e refutações, levar cada vez mais para longe a fronteira do desconhecido, mas este parece cada vez mais arredio e provocador, e nos mostra que o infinito parece ser seu único limite. Quanto mais desbravamos e mergulhamos em ciência mais aprendemos, é verdade, mas temos assim cada vez mais conhecimento do muito que falta ainda aprender. Cada vez que alargamos a fronteira do conhecido, mais a floresta do desconhecido nos desafia e provoca, parecendo cada vez maior e mais densa.
 
Entendo que o inferno foi feito do céu, e o céu foi construído por nossa imperfeita, falha e limitada capacidade de percepção e de processamento mental do percebido.
 
Nossa insegurança e nossos medos nos fizeram criar deuses a nossa imagem e semelhança do que imaginávamos para nosso bem e para nos dar coragem e confiança de viver em pleno desconhecido.
 
Entendo que a nossa evolução mental nos faz ter espaço mental para crenças sobrenaturais, e a criação de deuses era uma questão natural e assim tomou lugar em nosso self e como um dogma nos fez simplesmente acreditar em nossa própria criação, como se criados e observados por eles fossemos. Desta criação, criar o inferno era também natural, uma vez que necessitávamos de uma morada para o mal, posto que deuses, por nossa própria definição, haviam de ser bons por natureza própria. A humanidade logo percebeu que a figura do inferno poderia ser positiva não somente para amedrontar, mas também como força de catequese e domesticação.
 
O poder assume a ordem da vida e aquela imagem de um deus benevolente, capaz de nos ajudar e guiar, além de nos dar coragem e submissão, se perverte em um deus punidor e em certos pontos até perverso. Este deus agora era muito mais interessante ao estado dominante, para nos forçar a aceitar aquele mesmo estado dominante: classes, castas, reis, miséria e etc. Este deus seria, por muito tempo, justificativa para quase tudo, de monarquia a punições, tínhamos agora uma força externa sobre a qual não podíamos nada, que nos obrigava a aceitar as coisas como eram, e isto era ótimo para os poderosos, para a desumanidade aparente, pois faziam parte de um enredo que não conhecíamos nada e que nos era impossível questionar, ou entender o que aquele deus escrevia sobre linhas mais do que tortas. Aqueles deuses, prometendo-nos, em longo prazo, um futuro promissor e uma nova vida de progresso e bem aventurança celeste aos que aqui hoje sofrem, nos tranquilizavam, enquanto para aqueles que viviam vidas abastadas estariam legados ao fogo do inferno.  O que poderia ser melhor que isto para o poder dominante do que ter a população recatada e pacificamente contida sem esforço.
 
Seres celestes ou infernais não batem sino algum, posto que imateriais e frutos de nosso pensamento, apenas nos iludem, ou nos guiam as cegas por caminhos muitas vezes irracionais, e nos restringem o ato de conscientemente pensar, questionar e nos revoltar, aqui e agora, contra o estado social e político de abandono de enorme parcela da população mundial, pois nos permite a desculpa salvadora da redenção futura para estes seres abandonados, segregados, estigmatizados, “preconceituados” ou perseguidos.
Eu tento bater meus próprios sinos, e se não o faço mais vezes, e com mais firmeza, é por puro medo, preguiça, descaso, omissão ou desumanidade.
 


Arlindo Tavares
Enviado por Arlindo Tavares em 21/07/2012
Código do texto: T3790312
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