Os Donos do Jogo e as Falhas Programadas
Os Donos do Jogo
O sistema é destruído por suas próprias contradições. Mas, na medida em que as produz, também se alimenta delas, se aproveita delas, se apropria delas e as utiliza a seu favor. As dissidências do sistema oferecem uma alternativa a ele, mas também podem ser manipuladas por ele, sendo cooptadas ou não. A anomalia é sistêmica. Até as dissidências do sistema são parte do sistema. Elas se integram ao jogo atuando de acordo com os interesses dominantes da mesma maneira que os representantes dos interesses dominantes. As que fogem a essa regra são eliminadas.
É possível fugir à regra? Eventualmente, pois até as nossas escolhas são determinadas. A questão é que na medida em que elas existem e se dão em inúmeros contextos possíveis e se relacionam com a experiência pessoal de cada indivíduo assumem um caráter contingente e podem mudar o roteiro, rompendo com a inércia social e com as determinações estruturais. Mas isso só é possível em situações muito específicas, em circunstâncias excepcionais, quando os de cima, os que governam, os que dominam se desagregam, se desarticulam, e perdem momentaneamente a sua capacidade de domínio. Mesmo com a perda da direção espiritual da sociedade, ainda governam, desde que tenham forças para manter o controle social não só pela ideologia ou pela repressão direta, mas pelo medo, vencendo a batalha sem desembainhar a espada. Por isso mesmo, como regra geral, o sistema, e falando do sistema capitalista em especial, se alimenta de sua própria destruição, de sua própria oposição, de sua própria crítica, de sua própria dissidência, pois se assim não o fosse, não seria permitido, não da maneira que é.
Analisando casos concretos, exemplos reais, históricos, podemos citar primeiro a própria situação da política brasileira, partindo de nossa realidade. Hoje o governo de centroesquerda do PT governa para os capitalistas melhor do que a própria direita. No entanto, é preciso que exista uma oposição de direita que seja uma alternativa institucional no caso de seu desgaste. Mas nem todos se identificam com a oposição de direita, muitos formulam a sua crítica à esquerda e para que o processo não seja caótico e possa ser vigiado de perto, tolera-se uma oposição de esquerda legal, que, além de outras coisas, enfraquece politicamente a burocracia no poder e acaba ajudando a classe dominante a moderar os seus apetites, a reduzir a sua força e, portanto, sua autonomia em relação aos seus senhores, obrigando-a, desse modo, a negociar e a se enquadrar ao que são os interesses dominantes, mesmo que não seja essa a intenção dos que lutam; uma outra consequência, essa positiva do ponto de vista imediato para os trabalhadores, é que a partir da pressão pela esquerda é possível forçar o governo a realizar concessões pontuais necessárias à classe trabalhadora, o que alivia sua situação de penúria, mas que, do ponto de vista histórico, garante que o sistema não imploda, que o tecido social não se rompa. O elemento mais progressivo que pode deixar uma semente para uma conjuntura catastrófica é a educação revolucionária, que está na divulgação das ideias socialistas, nas palavras-de-ordem e na experiência de luta. É esse elemento que pode agir no sentido da ruptura; inclusive, o elemento mais subjetivo, as ideias, que se tornam força material nos momentos de crise.
Outro caso é o de Lênin na Revolução Russa. Ele era de longe o elemento político mais perigoso para o capitalismo. No entanto, o governo alemão não hesitou em fazer um acordo com ele, pois seria mais um agitador para enfraquecer a Rússia na guerra contra a própria Alemanha. A questão é que, diferente do que o imperialismo alemão esperava, os bolcheviques conseguiram realmente cumprir aquilo que prometeram (isto não era dado, era até improvável, mas aconteceu) e aí, logo em seguida, o imperialismo teve que atacar o governo revolucionário. A destruição provocada pela guerra civil conseguiu conter o avanço revolucionário e a vitória definitiva.
Desse modo, podemos concluir que os donos do poder jogam com todas peças do tabuleiro. Eles jogam com as suas cartas e com as cartas nas mãos do adversário. Se isso dá certo sempre é outra questão. Mas funciona na maioria das vezes. Somente em momentos de crise aguda e profunda é que a situação pode fugir do controle e o acaso pode influenciar decisivamente no sentido oposto ao que fora planejado por quem domina. As falhas do sistema também são conhecidas por quem a tudo e a todos controla. Tudo se resume então a se essa capacidade de controle estará ativa no momento de falha sistêmica grave.