Destroços da vida
Esse mundo é triste.
Tantas dores, tantos espíritos despedaçados, tantos corpos mutilados.
Tanto amor perdido, tantos desencontros e frustrações, que se acumulam, que se fortalecem em retro-alimentação.
A desatenção, a falta de comunicação, a falta de entendimento do outro, a falta de preocupação... geram fagulhas de inimizade que explodem em guerras, em ódio, em racismo, em violência extrema. De todo o horror que há no mundo, quanto dele é absolutamente necessário? Quantas crianças que se tornam monstros poderiam ter outro destino se houvesse um acompanhamento contínuo ao longo de suas vidas? Será que se pequenos abusos, traumas e frustrações fossem eliminados, essas crianças se tornariam adultos conscientes do próximo? Será que se suas próprias dores tivessem ecoado em ouvidos complacentes, sua resposta às dores dos demais fosse diferente?
Por mais que me repitam, não consigo acreditar que pessoas sejam más em sua origem, por sua natureza... por mais hediondo que seja o ato cometido, continuo enxergando um ser humano, uma criança que um dia já foi benigna, hoje empunhando o cajado do demônio. E por isso me desespero quando contemplo, no meu dia-a-dia, coisas que sei ser erradas, coisas que vejo claramente que irão gerar traumas... me parece que consigo até ver, no futuro, aquele pequeno equívoco gerando conseqüências deploráveis.
Dói-me ver pais batendo em filhos sem necessidade, crianças abandonadas ou maltratadas, amantes que não se entendem, pais que não entendem os filhos que não entendem seus pais, egoísmo na estrada, no estacionamento, na fila do mercado... tanta coisa que poderia ser evitada se houvesse um olhar de fora regulador, um Pai benevolente que orientasse seus filhos e os protegesse do Escuro. Mas esse Pai, embora muito de seus filhos acreditem nele, não dá mostras de que existe, ao menos não objetivamente. E por isso a Escuridão continua subvertendo seus filhos, a Dor os encontra sem clemência. Para aquele que tenta seguir seu caminho sem prejuízo a outrem, pior ainda, para aquele que sente a dor do outro, mesmo desconhecido, em suas entranhas, pouco consolo é oferecido, até que na loteria do cotidiano, a dor o atinja de forma que ele não tenha mais como renegá-la.
Hoje vi uma notícia que me estarreceu, que me revirou o estômago, que consumiu minha concentração até agora. Uma criança de seis anos foi arrastada por quilômetros do lado de fora de um carro, presa a um cinto de segurança. Os fascínoras que assim a conduziram à morte, pedaço a pedaço, não têm a menor noção do que significa ser pai, ser mãe, do sacrifício pessoal, do amor abnegado, da vontade inabalável de proteger aquele pequeno ser de todo o mal, de todas as pequenas coisas ruins da vida. Não têm noção de humanidade, de dor, de sofrimento, de empatia. Ou por outro lado, talvez tenham tido tanta concentração de males em suas vidas a ponto de se dessensibilizarem totalmente e se tornarem o que há de mais vil rastejando sobre a face da Terra. Já foram capturados, e é bem provável que sejam linchados, torturados na prisão e finalmente mortos... para quê? De que adianta? O que irá devolver os anos perdidos, a sanidade da mãe, a expulsão da vida de forma tão traumática daquela pobre criança? Eu não a conhecia, não sei seu aspecto, seus antecedentes, sua vida... mas hoje quero chorar, sinto uma dor inexplicável para alguém que nunca cruzou meu caminho... ou será que simplesmente tenho uma sensibilidade que, teoricamente, deveria ser comum a todos, se todos tivessem tido o ambiente saudável que tive em meu crescimento?
Hoje estou em luto por aquela família destroçada como seu filho... que sua alma infantil possa ter algum repouso em outro plano de existência. Torço para que as pessoas compreendam que seus gestos geram conseqüências, para que transmitam solidariedade em detrimento da indiferença, para que bestas como essas ao volante não sejam geradas todos os dias, todos os momentos. Torço por um pouco de humanidade nos seres que convencionamos chamar de humanos.