Surpresa no palco

- O único motivo de todas estas pessoas estarem aqui é você, Karen! - dizia o animador de plateia estendendo as mãos sobre a vasta multidão de curiosos à espera de verem as cortinas abrirem - Este é seu momento, não o desperdice.

Ditas estas palavras, aquele senhor de rosto batido e sobretudo preto com lantejoulas coloridas desapareceu na primeira sombra no corredor de entrada no canto do palco. Podiam-se ouvir os murmurinhos do outro lado do manto vermelho, prontos a exaltar o objeto de toda aquela veneração precipitada. Aclamações, risadas, a grande volúpia dominadora preenchendo as cadeiras, desfigurando sorrisos, suando mãos. Era o grande dia. Todo mundo poderia contemplar o grande espetáculo. Os ventos levaram a notícia de uma personagem, um ser desconcertante que tinha o poder de influenciar essa geração, capaz de convencer os anjos a fecharem seus olhos às catástrofes existentes no mundo dos viventes.

Karen ensaiou durante toda sua vida. Tinha uma voz e uma história para transmitir. Era o que todos naquele lugar esperavam dela. Que se mostrasse à humanidade. Sabia que era amada. Estava acostuma com o pedestal.

Dois senhores, trajando ternos e cartolas conversavam ao longo da primeira fileira, causando expectativas nas demais figuras inquietas:

- Soube que ela tem o poder de esgotar nossas lágrimas! - disse o primeiro tentando impressionar - Quando ela canta, as rosas desabrocham, o sol nasce mais cedo e as pessoas encontram motivos para viver.

No outro extremo, o segundo homem, um pouco mais velho, tirando um lenço do bolso e enxugando a umidade da testa, ia mais adiante:

- Ela sabe cantar a canção da vida! - exclamou - Dizem que pode ver nossos corações, conversar com eles, tocá-los. Por Deus, hoje não saio daqui antes de contemplar essa obra de arte ambulante. Ela é a personificação da palavra inspiração.

Toda plateia discorreu sobre Karen contando pequenas parcelas dos fatos como se fosse toda verdade sobre sua pessoa. Por trás das cortinas, ela respirava em intervalos calculados, mantendo as emoções a um nível que pudesse controlá-las. O relógio estava com muita pressa. Por quê?

Levantou-se a fim de esticar um pouco as pernas e aliviar a expectativa. O sangue parecia evaporar por seu rosto, manchando de vermelho sua pele. O vermelho do calor, do fogo, da entrega. Faltavam dois minutos. Finalmente a humanidade teria a honra de presenciar um dos maiores e mais impactantes acontecimentos que a história já registrou. Os livros não conteriam, nem as bocas dos sábios, nem a velocidade da notícia na boca do povo. Somente na imaginação alheia daria uma dimensão significativa. Todos queriam ouvir a canção da vida através dos lábios e da voz sibilante de Karen Magrani.

O animador anuncia seu nome. As pessoas ajeitam-se nas poltronas. Todas as atenções são dirigidas à frente. As cortinas se abrem... Começa o espetáculo!

Dirigindo-se ao centro do palco, olhando detidamente para um horizonte imaginário, ela estacou. Olhou a do teatro como um céu pronto a ser rasgado, expondo os fios de eletricidade que acendem as estrelas. Cerrou os punhos evitando que as mãos tremessem convulsivamente, e enchendo o pulmão de ar, relaxou. Era só abrir a boca e deixar o som sair. Entregar-se ao momento e parecer muito à vontade, mesmo se não estivesse. Esse era um dos grandes segredos da vida.

Quando as cortinas se abriram, uma onda de ovações varreu o ar como nuvem de gafanhotos. Naquela multidão de faces cálidas, via-se o clímax, o êxtase, o orgasmo desinibido dos corações felizes, aplaudindo de pé aquele anjo e seu coral de expectativas.

Segundos se passaram e o silêncio enfim conseguiu seu lugar no espetáculo. Os grandes olhos negros de Karen, que nos momentos tensos, irradiavam fogo e reflexão, enfrentavam os demais com tal superioridade, colocando uma segurança ensaiada como centro de apoio. O número seguia seu curso. Ela se sentia desejada e invencível.

Fechou os olhos, rendida, sentindo seus pés saírem do chão, sugando-a para o universo. Abriu lentamente os lábios e começou a cantar. Oh, como era doce o som de sua voz! Como o mel, o puro mel das rainhas nigerianas.

A plateia observava com olhos semicerrados, sem qualquer julgamento, apenas deixando que acontecesse. Certamente que logo tudo aquilo explodiria numa nuvem de gritos maravilhados, assovios e aplausos incansáveis. Não havia quem ouvisse a canção de vida e não se sentisse tocado por seu tom condescendente. Karen mantinha sua boca aberta e o coração livre. Era a apresentação mais importante e perfeita de toda sua vida. Esse dia entraria para história daquele lugar e as pessoas repetiriam seus passos com o passar dos anos. Karen seria um marco, uma lenda, uma inspiração. Canções seriam compostas em seu nome. Era a glória da evidência!

Dez minutos depois, quando enfim seus lábios se fecharam, uma sensação estranha acometeu-lhe à alma. Onde estavam os aplausos, os gritos, ás lágrimas emotivas? No lugar onde devia haver congratulações, apenas o mesmo silêncio marcando hora. As pessoas na plateia se entreolharam, meneando suas cabeças e com semblantes decepcionados, levantaram-se disfarçadamente, viraram as costas para o palco e deixaram o teatro com pretensão de nunca mais voltarem. Uma surpresa um tanto inesperada para aquela que entoou a mais linda de todas as canções.

Permaneceram no mesmo lugar, incrédulos, Karen em silêncio, o palco, e o animador de plateia chorando por conta do descaso com sua maior revelação.

Esta estória criada por mim pode não impressionar, e não foi para isso que a criei. É uma simples ilustração. Algo que a vida tem me ensinado. Ela serve para nos mostrar exatamente como nos encontramos muitas vezes diante do mundo em que vivemos.

Nosso EGO é um animador de plateias, querendo nos mostrar ao mundo de qualquer maneira. Como insistimos para que as pessoas nos vejam, notem nossa presença, reconheçam nosso valor! Certamente que às vezes pensamos que somos a maior atração do mundo, e, sem querer, criamos um personagem que na verdade, não tem nada a ver conosco. Ensaiamos o show, estamos confiantes de que faremos história. Vejamos que Karen cantou a canção de sua vida, e construiu seu espetáculo baseada apenas naquilo que os outros diziam a seu respeito, e não na verdade que conhecia sobre si mesma. Quando tudo o que sabemos sobre nós é aquilo que as outras pessoas dizem, nunca saberemos nosso real valor. Só que sua vida não era tão interessante para aqueles que a ouviram dessa vez. Isso porque as pessoas nem sempre são obrigadas a engolir nosso jeito de viver ou mesmo a forma como entendemos e cantamos nossa vida. Esse conceito elevado a cerca de si mesmo pode nos enganar sutilmente. Há momentos em que seremos aplaudidos, e outros em que seremos desprezados. Pode ser que o mundo nos ovacione, pode ser que nos critique. Nosso EGO pode chorar por isso, nosso teatro ficar vazio e nós absolutamente sozinhos. Tudo pode acontecer o contrário. Isso faz parte da vida do ser humano. No entanto, ao invés de crucificarmos os pensamentos alheios, fecharmos as portas do nosso coração e encerrar a carreira, podemos nos levantar, aprendermos essa lição e prosseguir com a jornada. Faça seu show sem esperar reconhecimento humano, pois as obras motivadas pelo EGO quando não reconhecidas, geram frustrações. Por isso devemos fazer o que amamos pelo simples prazer de fazê-lo. O importante não é o tanto de vezes que somos fracassados em nossas apresentações... O que não podemos fazer é deixar de cantar.

Por isso mesmo, Karen se recompôs, encheu novamente os pulmões e soltou a voz. O teatro estava vazio, nem mesmo uma alma ao alcance dos olhos. Pelo menos estava fazendo o que queria, ganhando afinação para o próximo espetáculo.

Desistir de seus sonhos é o mesmo que desistir da vida!!!!

"Para almas cansadas"

Karlos S Augusto
Enviado por Karlos S Augusto em 16/06/2012
Código do texto: T3727294