:::Outsider::::

E então descubro-me em algumas míseras páginas de um livro antigo e mau cheiroso, no meio de suas infinitas folhas amareladas, encontro-me. A menina que chora escondida no banheiro enquanto escreve rabiscos num prisma de sonhos, projetando ao seu redor aquele obscuro mistério de ser multifacetada. Identidade que se move rápida em questões de segundo. Apresento-me então mais formalmente: Prazer, sou anjo e fera. Sou humana e loba. Sou escritora.

Não há como entender essa dualidade que preenche-me. A humana frágil que chora, que dramatiza, que sofre por pesares que nem são seus. Que esperneia por atenção, que é delicada e sublime. Que fala de amor e escreve poesias e longas cartas aos suspiros. Doce, doce e teimosa. Existe essa menina, essa doçura, essa aprazível presença, mas não sou apenas essa.

Sou também a menina raivosa, mau humorada, selvagem no sentido mais inócuo da palavra. Por que abomino a ideia de ser apenas doce ou uma fera indomável. Sou a parcela idêntica de ambas as partes. Sou boa e má, sou doce e amarga, sou dócil e atroz. Depende do meu estado de espírito ou de qual lado eu alimentei mais. Mas sou equilíbrio e abomino a ideia de ser apenas uma parte. Por que, mesmo no amor, é preciso dosar o carinho e o desapego.

"Era indiferente saber se o lobo se havia introduzido nele por

encantamento, à força de pancada ou se era apenas uma fantasia de seu espírito. O que os outros pudessem pensar a este respeito ou até mesmo o que ele próprio pudesse pensar, em nada o afetaria, nem conseguiria afetar o lobo que morava em seu interior. Muita gente existe que se assemelha a Harry;

especialmente muitos artistas pertencem a essa classe de homens. Todas essas pessoas têm duas almas, dois seres em seu interior"

[O Lobo da Estepe - Hermann Hesse]

Ana Luisa Ricardo
Enviado por Ana Luisa Ricardo em 30/05/2012
Código do texto: T3696696