RECUSA

Eu me recuso

A cair do cavalo,

Catar coquinho,

Entrar numa barca furada,

Comer o pão que o diabo amassou.

Eu me recuso

A negar o bom pastor,

Andar pela aí sem rumo e sem destino,

Pensar em recomeçar noutro lugar, outra vida.

Eu me recuso

A reabrir as portas do coração,

Outra pessoa, falsa promessa, não e não,

Recuso-me a cantar no banheiro, a rir à toa,

Eu me recuso, também,

A procurar moradia,

Comer pão amanhecido ou comida fria,

Tomar banho de bacia,

Acordar à noite, dormir de dia.

Eu me recuso a acreditar no fim,

Que você consiga viver sem mim,

Porque eu, simplesmente, não consigo

Imaginar seguir assim

Eu me recuso, ainda,

A enfiar o rabo entre as pernas,

Subtrair a virgindade de uma donzela,

Dar linha na pipa,

Andar em animal sem arreio,

Amarrar cachorro com corda de lingüiça,

Eu me recuso,

Temperar carne de pastel com pimenta do reino,

Sentar no trono do fracasso,

Tapar o sol com a peneira,

Plantar bananeira,

Caminhar sem eira, nem beira,

O joio do trigo, não separar

Eu me recuso, finalmente,

A andar de lambreta,

Fazer pacto com o capeta,

Levar toda a roupa numa só maleta,

Fazer uso de uma escopeta

Ser fritado, oprimido, subjugado,

Desavergonhado, de cara lavada ser taxado,

Soltar as rédeas da luta, se dar por vencido,

Ainda assim, mesmo ferido, recuso-me

Entregar o outro ao bandido.

E me recuso, acredite,

A ver o sol nascer quadrado,

Enfiar a mão em buraco de tatu,

Cutucar onça com vara curta,

Sentar em formigueiro.

Nadar sem colete,

Jogar sujeira no rio,

Recicláveis no lixo,

Maltratar animais.

Enquanto isso,

Cada dia mais só,

Tendo a recusa por companheira,

À espera de um milagre,

Quem sabe um final de noite,

Sem sombras, sem rancor e sem passado,

Nova vida, da estaca zero,

Sozinho, provavelmente,

Assim que o dia amanheça.