Cegueira À Guisa da Sombra

Silogismos de um Ocioso.

O alvorecer surge. Traz consigo o holograma das intermitentes sucessões de aborrecimentos e acontecimentos desinteressantes e triviais que em nada darão e em nada resultarão no decorrer das horas e dos anos. O primeiro minuto desperto é uma luta contra mim mesmo. Cada saída da cama é uma vitória sobre a morte e uma derrota sobre a vida. Não sei. O pouco que eu pensei que sabia escorreu pelas minhas falangetas doídas. Dormir modorrento, acordar nauseabundo. Um recheio de sonhos perturbados, perturbadores, no ínterim entre meia-noite e meio-dia. Vice-versa. Quero desistir de tudo de vez sem sofrer as conseqüências. E a única maneira de fazer isso acontecer é me matando. Não quero me matar. Quero viver. Eu gosto de viver. Só não gosto da vida. Não da maneira que ela me foi apresentada e se apresenta diariamente em forma fálica e espinhosa, tarada por meu reto. Gosto da vida quando os pensamentos ruins saem para passear. Um fim de tarde diante do mar. Água de côco e um cochilo ouvindo a malemolência do marulho. Sentir as ondas nos meus calcanhares. A brisa morna no rosto. Observar os torvelinhos. As bolhas na areia molhada. Parece pedir demais. Esse desemprego vai me enlouquecer. E o primeiro sinal dessa malsinação é a saudade que ando sentindo de ser um mero peão no tabuleiro de um jogo que estou fadado a perder por não ser esperto/vil/mendaz/torpe/astucioso/invejoso/recalcado/preguiçoso-mental o suficiente. Mas, não: pilha de louça e de roupa pra lavar, pão de ontem, escassez de vontade, excesso de morbidez. Fraqueza. Miserabilidade. Outro dia passado à míngua, à base de água da torneira da pia do banheiro. Com aquele espelho lá. Sem eu reconhecer o reflexo. Olhar uma criatura sabendo o que se passa dentro dela por você sê-la e mesmo assim não reconhecê-la. Amaldiçoar a própria estupidez se olhando nos olhos e não encontrar a alquimia para erradicá-la. Dias que se resumem a isso. E à espera de outro dia repetido. A vida resumida a uma noite de sono na escuridão, com uma faísca de esperança num alvorecer radiante que só existe nos sonhos mais delirantes – talvez nos sonhos de um cego. Cuja cegueira é materializada na própria sombra.

29/05/2012 - 18h05m

City & Colour - The Death of Me

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 29/05/2012
Código do texto: T3694776
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.