DEUS FORA DO PARAÍSO
Quando nasci minha mãe me envolveu no manto da proteção absoluta, o manto sagrado. Fora avisada que as tempestades seriam inclementes. Os furacões sacudiriam sem piedade, espalhando estilhaços em todas as direções. Se não me cuidasse bem de mim seria eu responsável pelas desgraças do mundo. Ela tentou fazer de mim um superprotegido.
Deus, um homem de barba comprida, embranquecida pelo tempo e amarelada pela fumaça do cachimbo, tinha sentenciado. Com modos comedidos, discurso paulatino, revelou uma sabedoria magna. Enristou o dedo e ditou com a voz de trovão: “se tu num se explicar, moleque, vai apanhar, vai sofrer, pela vida a fora. Tu não pode ser responsável pelo sofrimento alheio e muito menos culpar a mim por não ter te ensinado. Vai seguir as regras máximas do Ensinamento Sagrado e nunca vai citar meu nome em vão.” Nada prometeu, nada me ofereceu, apenas ralhou... e ralhou muito. Tomou o cajado e sumiu na curva da estrada. Uma nuvem de poeira o ocultou a imagem e as palavras se tornaram pouco lembradas.
A sabedoria de Deus é mesmo uma incógnita: às vezes são reveladas por uma série de aclamações, às vezes são esquecidas por inventos tão alentadores que o próprio se rende. Mas ele não poderia ser Deus se não guardasse seus mistérios!
Como sempre foi anunciada a volta de Deus fiquei a imaginar esperançoso que ele retornasse para preconizar uma sentença mais animadora ou para me resgatar do infortúnio. Os dias, meses e anos embaçaram meus olhos, fixos no fim da estrada. Os anos foram responsáveis por apagar a memória, suas prédicas, seus ralhos e apenas sua fisionomia ainda povoavam vagamente minha cabeça. Não o vi voltar.
Mamãe se desesperava, sem ter quem a socorresse das cruezas da vida, sem homem para suprir as necessidade da casa. Sem marido para se deitar, para gozar os deleites da alcova, sem santo milagroso, sem Deus. Uma mulher não pode viver sem homem, não pode viver sem Deus. Os padres-nossos, ladainhas e ave-marias às tardezinhas, súplicas e mais súplicase de nada adiantavam. Arrogante, Deus não se manifestava. “ Deus me abandonou! Ele nos deixou, nos amaldiçoou. Mulher não pode sair de casa, não pode ir à luta, não pode ir em busca de comida. Se pedir esmola é mendiga, maltrapilha, se for em busca de emprego é quenga, se for se prostituir pode ser apedrejada. Os homens a cortejam feito carcarás, prontos para comê-la viva. Depois fogem,voltando apenas quando a fome bate.” Não queria ser mulher da vida, mas prostituir era apenas para ganhar o pão e alimentar a cria que tanto amava e que o próprio Deus mentia quando um dia disse que amava.
Mandei cartas pedindo que ele me desse um presente de uma máquina milagrosa que vê, lê e escreve, mas nunca recebi resposta. Nem tinha certeza se ele tinha recebido as missivas. O endereço era incerto. Manda a carta para o Paraíso, menino: dizia mamãe. No Paraíso não há endereço preciso, e assim creio que as cartas se perdiam. Cartas, telegramas, telex, mensagens radiofônicas, emails, todos eram extraviados ou o destinatário se negava a responder.
Mamãe andava tão desanimada que nem suas preces conseguiram força para subir até o Paraiso. A máquina de viver andava desalentosa, sujeita a parar a qualquer momento.
Senhora, o apelido que mamãe ganhou dos mais íntimos e foi se espalhando até todos se acostumarem, era uma santa que chegava a se assemelhar a Nossa Senhora, a mãe de Deus. Durante muitos anos fez mais milagres que Deus não conseguiu fazer – com um mísero salário a custa de lavagem de roupa, faxinas e venda de estatuetas comprava os alimentos básicos, me mantinha na escola e ainda comprou a prestação uma máquina milagrosa para mim. Ela aprendeu a só reclamar da ausência de Deus à noite. Na cama a falta dele era mais dorida. Percebi que ele era mesmo poderoso, pelo menos nos desejos dela.
Embora uma legião de fanáticos reprisassem que sua volta estava próxima eu achava que ele nunca mais regressaria. Porém numa manhã, enquanto mamãe coava o café, ouvi os passos sorrateiros adentrando a cozinha. A voz de trovão ecoou: “O café tá pronto?” Mamãe quase entornou o bule. “Deus, seu desgraçado! Pensei que nunca mais voltasse... Estávamos aqui, eu e esse menino penando e tu lá no Paraíso, gozando das delícias e nós aqui neste inferno!” Pela máquina milagrosa eu tinha lido que o Paraíso se tornara um inferno.
Deusdete abriu a mala de duratex e tirou dela umas roupas sujas de barro. “O Paraíso também virou um inferno. Não tem mais ouro por lá. As grandes mineradouras tomaram conta dos garimpos e estão esplorando tudo. Há ladrões por todos os lados, casas de prostituição, fanáticos buscando o céu, mulheres da vida, gonorreias, assassinatos, inflação, devastação ecológica. Paraíso de Goiás foi invadido pelos exploradores.