Buril da alma




Hoje é um dia especialmente triste. Não daquelas tristezas feias que embotam e azedam nosso humor, que nos desmotivam e que nos fazem torcer o nariz pra vida.

Falo daquele tipo de tristeza nostálgica que nos lembra que o livro do tempo de nossos dias teve páginas viradas. Que histórias lindas se foram para sempre com seus protagonistas, deixando-nos atônitos, sem palavras, só com um grande e intraduzível vazio.

Há exatos dois anos, subitamente, o Grande Arquiteto entendeu ser o momento oportuno para alterações no projeto que servia de base para minha vida. Como é de praxe as mudanças vieram sem aviso, paredes foram derrubadas, colunas foram retiradas, a remodelagem foi profunda e fiquei com a sensação de que eu gostava muito das coisas como elas eram, de que não era hora ainda de mudanças, mas... elas vieram!

Pessoas muito amadas mesmo foram retiradas do meu convívio, contrariando a minha vontade e a delas e subitamente meu mundo se viu mutilado de elementos essenciais, dos quais hoje só restaram saudades... e muitas.

Reconheço que o buril de lapidação da alma, representando a saudade e a dor da perda, deixou marcas profundas e uma enorme necessidade de encontrar novamente sentido paras as coisas.

De vez em quando me vejo tendo que enfrentar situações que revolvem as feridas ainda não inteiramente cicatrizadas: são lugares e pessoas que, de tão vivos ainda na memória, nem sei mais distinguir se são reais ou simples recordações que ficaram  guardadas.

Já me deparei pensando que sou um fantasma esquecido nesse universo de lembranças, assombrando os escombros dos momentos inesquecíveis, mas que só podem permanecer existindo no coração.

Confesso que às muitas perguntas que se seguiram, muitas respostas foram dadas e hoje posso afirmar que coisas totalmente sem sentido já não o são.

Não posso conviver com a falta de sentido, com a força implacável da estupidez humana impondo-se como única explicação razoável. Quero crer que até a estupidez tem sua função educativa e regeneradora.

Tragédias explicam-se como conseqüências de atitudes pretéritas que jamais terão sentido se examinadas no estreito binômio berço-túmulo (para emprestar expressão recentemente encontrada em um texto). Para além desse apertado período se estende uma eternidade na qual, acredito, estão depositadas todas as respostas.

O radar da vida nos encontra sempre e somos frequentemente convocados ao resgate de nosso débitos, já a tanto tempo esquecidos, edulcorados pela roupagem de uma nova existência que nos faz crer estarmos inocentemente livres de violações ancestrais dos códigos da vida.

Essas rupturas em nossa existência, acredito firmemente nisso, são apenas oportunidades preciosas de reparação na única moeda com a qual podemos efetivamente saldar nossas dívidas que é a moeda da experiência de sentirmos na própria pele aquilo que um dia entendemos infligir aos nossos semelhantes.

Essa compreensão da causa de tamanhos sofrimentos pode parecer absurda quando assistimos ao abate de vítimas inocentes pelo cutelo da violência gratuita abominável praticada por um ser humano contra o outro. Nada fizeram para merecer tão trágicos finais. Não cabe a mim qualquer espécie de julgamento, mas sei que tudo tem um propósito e todos os alcançados pela dor da tragédia liquidam faturas penduradas na conta do destino.

Choro lágrimas de sangue pelas minhas perdas, mas sinto-me reconfortado com o o fato de que tive o merecimento de, através da compreensão, ver mitigada a minha dor. Não posso pretender que outras pessoas vejam as coisas como eu vejo, e é certo que não vêem, por isso convivo às vezes com o julgamento precipitado a respeito de minha razões e de meu comportamento diante dos acontecimentos. O que posso dizer é que a minha dor é minha e não é de mais ninguém. Só em minha pele é possível saber o que sinto e porque sinto, fora isso não posso e não devo reconhecer a ninguém o direito de avaliar e julgar o que sinto.

Aos que amo, presentes e ausentes, tranqüilizo-os dizendo-lhes que estou bem e prossigo confiante em direção a uma luz cujo brilho jamais se apagou de minha vida.