Dor e cicatriz: dionisismo
Hoje me veio uma cisão para enxergar a dor, torrencial como a potente necessidade do acaso, do inesperado. Uma dor que não cessará até que pule em meu colo um duende, com máscara de tormento e sinais de morte, para que depois de lutar eu possa descansar. Que sono poderei ter com a expectativa de pesadelos? Uma dor tão latente, tão presente, de um passado que retorna voluptuosamente e me faz sentir atormentado. Um doende me trouxe, como em passe de mágica, o odor do sangue que outrora senti.
Mas não sinto apenas o odor do sangue, tenho em mim também as máculas de seu sabor, de sua textura e de sua cor forte. Ainda bem que foi meu peito que acolheu aquele ferido em lágrimas e desolamento. O covarde doende fez o menino escorregar e me trazer as marcas do meu passado, apesar de ser em notória novidade. Mas um espanto: uma solidão imensa invadiu aquele menino, ao ponto de perceber seu rosto desolado ser o meu em sua acolhida. Nos confundimos, nos fundimos em dor.
A maior astúcia de uma parturiente se manifestou quando minha força reconheceu na dor a capacidade para a imaginação. Parecia um grego vestido de Apolo. Vesti o menino despido com as roupas da bela aparência; provoquei sua mais bela força: a de fantasiar.
Contudo, minha imaginação não era tão à toa ao ponto de fantasiar sem retornar à dor com a imensa alegria de fazer um curativo: assumir a dor e torná-la uma catapulta para uma pele cicatrizada e forte. Ora! Ora! Uma cicatriz não perde a sensibilidade, é apenas uma mudança do modo de sentir a dor que a pele assume. É um dionisismo mesmo.
(Montanha, 05/11/2008).