Horizonte finito
Ainda pela manhã, ao abrir a garagem de casa, embora apressado, não me escapa contemplar os movimentos sutis que passam ao meu derredor.
Uma anciã passa, com os olhos cravados ao chão, que se assusta com os movimentos de um sacerdote ofegado em cumprir uma densa agenda diária. Penso comigo: certamente me interceptará para um desabafo amargo da vida, o que para mim naquele momento, agradavelmente não aconteceu.
Ao adentrar o quintal e conduzir da garagem o veículo, fico a contemplar aquele momento bucólico de uma realidade triste.
Pensava comigo: pobre senhora de aspecto pobre e pacato. No íntimo de mim brotava como que uma tela desenhada pelo artista chamado tempo. Seria ela um produto errôneo do processo evolutivo da raça humana, um desacerto genético ou uma herança mórbida de deformações morais de seus ancestrais, cuja história conheço?
Pus-me a contemplar o seu aspecto; seu corpo de sessenta e muitos anos não havia gerado descendentes, seu rosto triste era composto pelo descuido estético com impressionante defeito na arcada dentária. Seus braços finos contrastavam com o abdome exageradamente robusto a ostentar longos seios caídos. As pernas vacilantes e finas pareciam expressar a quase impossibilidade de suportar tão pesado corpo ladeira acima.
Os cabelos esfarofados, embebidos pela oleosidade natural de um corpo em via de decrepitude, produzia uma aspecto de abandono e perene descuido.
O corpo estava coberto por uma veste simples e pobre; um vestido tecido de cima a baixo, amarrotado e sujo devido ao descuido ou à falta de incentivo à dinâmica da vida. Os pés se apoiavam sobre um par de havaianas rudes, surradas e desgastadas.
Guardei por minutos aquela imagem a subir silenciosamente avenida acima, com o rosto de encontro aos raios solares da manhã que despontava e com o sibilar do vento leste.
Uma pergunta grita em meu interior: por que a vida é assim?
Então lembrei-me de um axioma da psicologia que diz: a realidade externa é sempre o reflexo do depósito interno das experiências do indivíduo desde a sua concepção, podendo também estar sobrecarregado de memórias geneticamente negativas dos ancestrais.
Tive a tentação de concluir: ela é o resultado do sofrimento e da agressão do seu interior estragado que lhe subtraiu o desejo da vitalidade dinâmica da existência, legando-lhe a solidão por existir em horizonte finito.
Uma coisa é certa: ela não se confunde com o nada ou com a ausência de sentido histórico e social; mesmo que inconsciente, poderá ser útil à medida que despertar o desejo de caridade nas pessoas que estão em via de crescimento e amadurecimento ontológico.
Uruaçu: (02/06/97)