A própria faca cortando a laranja

Na beirada da janela, Idgie olhava o Sol passar o dentre os galhos. Sentia o calor vibrar todas as suas moléculas, sentia o frio se quebrar no vento, sentia mais-que-mais e menos-que-tudo. Era na medida exata, tudo era na medida exata. Pessoas faziam a sua corrida matinal e tudo era milimetrado: o passo, a respiração, os braços se chacoalhando. Alguma coisa que controlava a vista da sua janela, tinha em mãos uma régua gigante que media tudo. Em outro lado de alguma rua, outra pessoa também bufava e assistia as passadas na neve branquinha. Perfeita simetria, perfeitamente planejado. Como alguém que tivesse escondido de todo mundo a verdade, que os opostos não se atraem: eles são a própria atração. E o fôlego perdido de Idgie era mais-que-mais, era menos-que-tudo. Enquanto o outro, do outro lado de alguma outra rua ganhava mais e mais fôlego, ar, inspiração. A tragédia escorria nos olhos do céu, o granizo raspava o rosto de quem o desafiasse. Era tudo planejado, contado. Não era metade de laranja, era a própria faca cortando a laranja. Simétrico, perfeito, oposto. E a sua mão fraca nunca poderia copiar um desenho desses. Mas ninguém percebia o quão forte era essa ligação de nada-com-nada e tudo-com-tudo. As pessoas corriam, corriam e se levavam com dificuldade na neve e ninguém notava. Ninguém tirava o fone de ouvido, ninguém deixava de escutar a música mofada, a moda passada pra perceber que as árvores eram de se tirar os movimentos. Elas cantavam naquele sopro gelado e quente, aconchegante e mesquinho alguma coisa que nós nunca conseguiríamos notar. Alguma coisa sobre cair sem sentir o impacto com o chão, alguma coisa sobre repetir a penúltima nota pro fim nunca se entregar. Alguma coisa sobre ficar na ponta dos pés pra sentir a altura de perto. E nós nunca saberíamos como é ficar lá em cima, no topo de algum lugar que nós sempre queremos estar. A tarde se desenrolava como um rolo de barbante e a neve caía como longos fios de cabelo. Caía intensa, áspera, de fundo. Só se ouvia o dedilhado das árvores na luz, a música escapar na última nota. E Idgie era exatamente a última nota. A outra pessoa de outra rua de outro lugar de outro mundo era o grito agudo de Idgie quando ela se deparava com saídas, desencontros e beijos na bochecha. Era o início, o começo, o ‘Era mais uma vez’. Era tudo o que as árvores nunca souberam como cantar.

Beatriz Adrivin
Enviado por Beatriz Adrivin em 01/04/2012
Código do texto: T3589154
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.