O espelho e o tempo
Incessante, me observo no espelho. O desconhecido me assombra no reflexo côncavo do inteiro. Há algo diferente – nas linhas de meu rosto, nas rugas de meus olhos, nas têmporas de minha solidão.
Perdido, então, me reencontro. É no abismo do convexo que, inconcluso, me compreendo: o futuro está (ultra)passado - nos pelos de minha barba, nos brancos fios de meu cabelo e no cansaço que insiste em retornar.
Mas, afinal, há tempos não sei o que é o tempo - se são os ponteiros de meu relógio, o tic-tac de meus hormônios, o desfalecimento de minhas células, o desgaste das cores de minhas paredes, o amarelar de minhas fotografias, as marcações dos calendários, os feriados nacionais, o galo da madrugada ou o nascer da lua cheia, o findar do salário no meio do mês – ou a gravidade, senhora que insiste e resiste às intempéries do não ser.
Penitente de mim mesmo e renitente dos demais, não me contesto e me entrego. Feita a barba, enxugo minhas mãos, guardo a gilete e me entrego à tempestade. Entre o espelho e a janela, prefiro a liberdade.