FIM DO PRAZO DE VALIDADE
Foi num dia comezinho de inverno desses que comparecem em grande número durante um mesmo ano, bem ao ocaso da jornada de trabalho. Constatei, meio assim, nesses insites que invadem de supetão: já era tarde para buscar dentre as balizas da minha vida qualquer coisa que seja nova. Antevi num feitio extravagante, de índole quase profética, que neste universo para tudo havia um prazo limítrofe de validade, ainda mais em se tratando das nossas empreitadas existenciais. Numa somatória de eventos de cunho interior e inexprimível, tive a certeza de que o tal prazo havia enfaticamente se extinguido, pelo menos no que era concernente a mim.
Eu, aquele que sempre imaginara que algo parecido seria passível de acontecer. Entretanto, não ponderara esse momento pudesse bater relativamente cedo à minha porta. Mas era bem isso: ficara claríssimo que aquela vida que eu por tantos anos cultivei de desejos não seria mais possível de se obter. Primeiro não haveria tempo cabível, diante do já decorrido. Depois, não existia mais aquela disposição vital para a empreitada. Indiscutível: aquele grande homem que eu tanto pretendia ser na juventude não mais se consolidaria nas tão batidas “vias de fato”. Ele estava definitivamente afogado ao fundo do leito das águas turvas de um oceano de impossibilidades.
Devagar, olhei ao meu derredor, feito o despertar do cair da cama. Enxerguei o mundo com uns outros olhos que não os físicos. Uma realidade demais estranha; inóspita. Extremamente distante de um sonho utópico e delirante que, certa vez, habitara-me o coração de ideais. Agora, a realidade se apresentava como um irreversível pesadelo, uma tormenta física real. A pirâmide do possível - como pode? - se invertera. O mais corrente desse insensato caminho natural não seria mais o ato de escalá-la, mas o de descê-la.
Não poderia eu elencar algo de inédito a me fazer arriscar-me, nada ao menos que eu sinceramente considerasse fazer valer outras tentativas? À luz da minha atual situação, nem haveria mísero motivo justificável a buscar uma única e pontual mudança.
Prostrado dessas certezas, senti, enfim, a massa infindável dessa fresca mortalidade, dessa imensa e instantânea putrefação. Penso que pelo caso seria até normal, mas não consegui chorar por isso. Meu peito de alguma forma se congelou, como que antecipando o sintoma cadavérico. Ocorreu o contrário. Ri debochado de mim, cínica, irônica e histericamente. Disparei ao ar uma gargalhada volátil ao fitar-me de esguelha no passar do próprio corpo pelo espelho de entrada do meu apartamento.
Tudo era terrificante. Mas, nem de longe, era o pior. De uma forma ou de outra eu agüentaria o baque da verdade até com certa galhardia e dignidade. Afinal, ela seria apenas o mero resultado da forma de construção dos pilares da minha vida. Sou hoje um sumo extrato de vida vivida redundante e manifestada nesse circunscrito momento. Estou tão bem acostumado com ela – digo, com a minha vida - confortavelmente conformado. Muito mais tenebroso era o que visceralmente arrancava minhas emoções de prumo, ou seja: àquela altura das coisas, eu ainda manter-me em estado biologicamente apurado como “ser vivente”, tendo respiração, constipação, fome, sede, desejos e tudo o mais. Pois jamais imaginaria nem em meu pior pesadelo que, diante circunstâncias pessoal e psicológica dessas, pudesse ser o caso de eu ainda manter vida a habitar o corpo saiba-se lá por mais quanto tempo.
Essa desconcertante constatação libertara-me bruscamente de tudo que antes fantasiara conter relevância, isso pela violenta via do caos interior e do desespero. Que eu estava sumariamente libertado. Finalmente: eu era completamente livre. Mas de que me valeria esse tipo espúrio de liberdade nessa altura da minha vida?
A situação toda me forçara a ter de fazer alguma coisa de significativamente útil com ela (nada mais importa é bem verdade, nem isso de haver utilidade nela...) porque passa a agir algo independente de mim, algo que é maior do que qualquer anseio pessoal. Um projeto além do discurso mecânico do meu ego, das minhas surradas e equivocadas expectativas. É que o peso da liberdade é mesmo um fardo imenso. Não recomendo.
Eu finalmente compreendera sobre um mágico segredo sobre a vida dos humanos: o porquê grande parte deles (dentre os supostamente civilizados), inconscientemente prefere estar inserido no engessado sistema escravocrata vigente. É a esperança de que a fábula mítica da vida não seja uma história dissertada em vão. O que move a vida não é a vida, mas os grilhões da esperança.
Do ocorrido, uma idéia me toma de roldão esses outros dias todos: viver a vida seria apenas uma forma de buscar maior leveza. Se é isso ainda não tenho muita certeza... Por ora, enquanto escrevo tomo uns chopes e já me sinto, pelo menos no quesito leveza, bem melhor. O resto o tempo tudo cura, inclusive a devida falta de tempo.