Hativka

Hoje acordei meio assim, meio sei lá. Tentei fumar e não consegui; tentei transar com as mãos e não consegui; tentei afagar meu gato e não consegui. Não consegui sequer sair da cama. Acordei contra todos. Acordei contra essa idéia de me sentir um prisioneiro num trem de carga rumo a Dachau. Acordei cansado com a previsão de todo o meu final de semana, com toda a idolatria cretina à sexta-feira; com preguiça de todos os convites para desbundes etílicos sem nexo. Acordei mais senilizado do que o habitual. Novamente disposto a solitude no claustro do meu covil. Sem ver. Sem ouvir. Sem interagir. Sem Ser... Sobretudo, sem Ser. Sem ser o ator principal e o ator coadjuvante do esquete da minha existência. Emancipar de mim a parte que apodrece um pouco mais todos os dias. Mergulhar na escuridão e não saber discernir o que é ela do que sou - como já escreveu o poeta. Tenho sido falho e pífio comigo mesmo durante tanto tempo! Todo o tempo do meu mundo à disposição das impaciências do mundo e nada me sobra e tudo soçobra; caí de um barco furado que se afasta cada vez mais - era furado, mas estar dentro dele não delineava um fim tão preciso e palpável. Vejo-o se afastando com seu letreiro brilhante escalavrado no casco minguando a cada légua percorrida; "Hativka", logo mais somente uma lembrança em uma memória sem boas memórias. Caso eu levante. Caso amanhã eu acorde como sempre: um autômato com início, meio e fim indesejados e pré-concebidos. Caso amanhã eu acorde como você.

24/02/2012 - 18h45m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 24/02/2012
Reeditado em 25/02/2012
Código do texto: T3517829
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