BEBER SEM BABAR
Beber e não babar, beber cerveja escura enquanto dedilha atentamente as seis cordas. Acordes dissonantes, cromatismo delineado. Gemido em dó maior.
Um Dostoievsky jogado pelo chão, um Joyce deixado na calçada, as folhas arrancadas de Kafka: ah, para o inferno os clássicos. A filosofia definhou Glauber Rocha, abocanhou Nelson Rodrigues, driblou Aristóteles e fisgou nas teias Sartre.
Onze cabeças cortadas, onze cangaceiros, onze homens param de disparar balas assassinas, semeando ordem, desordem e a miséria da caatinga mantendo-se pelos séculos. Presentear uma rosa que sangra, seja branca ou vermelha, dar um lenço para enxugar as lágrimas que chora por deus: deus não te chora aos pés, nem desenterra da poeira. Fere os joelhos na ladeira do Horto e morre de sede.
Chora com a música lúgubre: Asa Branca, Guantanemera, chora pelo Bolero de Ravel, chora, chora com os mantras tibetanos. As lágrimas vão encher o vale do Velho Chico, se perdem pelas escavações no sertão. Vão virar pororoca, barro puro para esculpir uma criatura à imagem divina: um deus mal feito à forma vitruviana, desfeito à ganância do Homo Capital.
A pele encardida dos homens-morcegos da Transamazônica, os olhos embaçados para não assistirem ao assassinato dos filhos, dos mognos e das seringueiras. Envelhecendo como Abraão, rejuvenescendo como Sêneca.
Despejando estrume no jantar, agrotóxicos no café-da-mnhã, restolhos das fábricas no almoço, teus tímpanos estouram e não ouvem a voz que clama nos desertos. Não há voz no deserto, só alarido na urbe.