Zebra Egoísta

Sempre torço o nariz quando o rebanho muge antagônico ao pobre diabo que escolheu o horário de pico pra se deitar nos trilhos e ser trinchado, esmigalhado e cauterizado pelas rodas do trem.

As rodas.

Elas me encantam.

Tão brilhantes! Tão seguras de si!

Girando milhares de vezes por minuto!

Sustentando toneladas de ferro e aço e gente.

Sempre que estou de pé, compartilhando o mesmo ar viciado com centenas de pessoas, odiando cada uma delas da mesma forma que cada uma delas se odeia secretamente, e passa o trem que vai no sentido oposto, eu encaro as rodas, tentando, sem conseguir, mensurar o estrago que elas são capazes de fazer na carne daquele que por acidente ou por vontade própria vá parar no caminho delas.

Essas pessoas que vão parar lá por vontade própria têm coragem.

As outras só têm um azar desgraçadamente desgraçado.

Na verdade, as primeiras é que têm um azar desgraçadamente desgraçado. E a coragem que possuem é a conseqüência de uma sucessão de covardias.

Odiado, infeliz, abatido, desmotivado, ele se volta contra o mundo que se voltou contra ele.

Então, a decisão - uma decisão corajosa, tendo em vista a possibilidade de o intento falhar e de todas as coisas mais imediatistas, infalíveis e indolores que temos à disposição - é tomada, e o horário é escolhido.

Oras, se o próximo nascer de sol já não fará mais parte da existência do pobre moribundo, por que não prejudicar ao máximo as insensíveis pessoas que ficarão e, com isso, invocar milhares de imprecações e maldições, e chegar ao Inferno com boas recomendações?

Eu tenho o desejo mórbido de presenciar uma cena como essa... Já tem um tempo que ando vendo vídeos do circuito interno de câmeras das estações que me propiciam noites de insônia, onde as cabeças das pessoas rolam pela minha retina, já desprovidas de um corpo. O que mais me causou reflexão nas imagens foi a calma desses suicidas.

A determinação em deixar de existir.

Aqueles que ficavam mais próximos da câmera estavam totalmente livres de lágrimas; totalmente desprovidos de uma carranca de tristeza ou de embrutecimento; encostavam à beira da plataforma como qualquer outra pessoa, e de repente pulavam, para consternação geral.

A composição nunca parava em tempo.

Algumas pessoas se afastavam horrorizadas; outras, se aproximavam para ver o estrago.

Para ver o monte de desilusões transformado em pasta de sangue, ossos e tripas misturados à brita.

Houve uma tentativa que não deu certo e que um amigo presenciou e filmou, e o coitado do atormentado teve a sorte de não ter conseguido morrer, ficando apenas destituído da perna esquerda joelho abaixo - apenas um pouco de carne e muito sangue envolvendo um fino e partido osso - e com o pé direito pendurado, quebrado, ligado à canela por um osso triturado. E ele gritava, urrava, agonizando de dor, enquanto um segurança pedia para que ele ficasse quieto, e ele perguntava: cadê minha perna? Ele falava: eu quero morrer.

Às vezes você sonhou demais e por variados motivos não pôde realizar seus sonhos. Por muitas vezes, você viu suas metas se transformando em pó. De repente você desiste e só quer morrer. E também não consegue.

Deprimente.

Houve uma época que o meu desejo de pular chegou a um ponto tão crítico que eu me mantinha o mais afastado possível da ponta da plataforma; ficava em pânico, me agarrando às paredes, e só delas largando quando já não houvesse a menor chance de ir repousar nos trilhos.

Foram dias difíceis, onde toda a incerteza do meu futuro era a certeza do meu futuro: adoentado, sozinho, desempregado e burro, jogado numa maca no corredor de um hospital público, urinando e cagando sangue nos lençóis.

Completamente sozinho, sempre entre a vida e a morte, mas nem morto e tampouco vivo.

Completamente sozinho, agüentando indiferença e compaixão alheia, sem nunca saber qual doeria mais.

Ainda me sinto assim, meio zumbi, apesar da ausência do desejo de dar um atalho à minha existência... Creio que a forca invisível que me sufocava em tempo integral foi tirada em algum momento feliz que tive. Ou talvez ela esteja apenas um pouco mais frouxa. Talvez eu esteja recebendo mais corda. Nunca se sabe.

O que importa é que, junto com a forca, perdi algo importante em mim mesmo – perdi minha profundidade, minha capacidade analítica submergiu e hoje o que dela restou bóia na superfície de um mar de estranheza.

Hoje, eu faço de tudo para ficar na parte da plataforma onde para o último vagão, simplesmente porque a entrada dele ali se dá rápida e inclemente, e lá eu fico, com a esperança de ver alguém sem esperança se jogando na frente do trem em movimento; porque eu penso que somente vendo uma cena dessas eu poderei recuperar o que perdi quando me encontrei das minhas perdições; é por isso que torço o nariz quando os estúpidos rasos se resumem a murmúrios rasteiros sobre a importância da vida e a danação eterna sob o tridente do capeta.

Porque eu sei como eles se sentem – eu só não tive a coragem.

Porque uma zebra reconhece a outra pelas listras.

E porque eu cansei de ver listras somente no meu reflexo nas janelas dos trens...

09/02/2012

Green Day - When I Come Around

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 09/02/2012
Reeditado em 09/02/2012
Código do texto: T3489529
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