O MUNDO QUE ESTAMOS CONSTRUINDO
Quando éramos pequenos, eu e o meu irmão voltávamos ao final da tarde do colégio no Centro da cidade. Íamos a pé, levando nossas mochilas nas costas. A certa altura do caminho, ultrapassamos um casal de negros que seguiam no mesmo sentido. Vendo-nos passar, a jovem senhora elogiou o fato de estudarmos, esclarecendo que éramos o futuro do Brasil. Seguimos nosso destino impressionados com o que ela disse, achando que éramos tão pouco significativos, sendo, inclusive crianças, e assim não poderíamos ser o futuro do País.
Quase quarenta anos se passaram desde aquela tarde, e meu irmão já não vive há quase dezessete anos, tendo dado fim a sua vida depois de muito ter usado drogas. Entretanto, meninos como éramos, fazem e aprovam leis hoje, governam, julgam, produzem economia, ensinam e decidem coisas muito importantes para este país com mais de duzentos milhões de pessoas. E veja que país estamos construindo.
Nosso pai nos criou com certa austeridade e muito fomos repreendidos, contidos e surrados. Ele mesmo reconhece que muitas vezes se excedeu, mas não nos caiu nenhum dedo e nem tenho qualquer trauma, se bem que algum desses psicólogos “gabariteiros” de agora poderia me analisar e detectar traumas, pois a presente insubordinação inventou pretextos para sustentar-se e justificar a insolência, entre eles, o cuidado para não traumatizar as crianças e assim os jovens estão se tornando cada vez mais insolentes e sem limites. Numa seção de análise meu irmão provavelmente alegaria trauma para justificar suas atitudes insolentes e autodestrutivas.
Muitas vezes nos sentimos sufocados e, por vezes, tivemos raiva. Algumas vezes pensei em fugir de casa e uma vez fugi mesmo. Entretanto, sinto no coração que meus pais não mereciam o castigo que lhes infringi com essa fuga e muito me envergonho de ter sido tão rebelde. Podem ter se excedido algumas vezes, talvez em relação a vigilância e austeridade, mas a repressão paterna desperta traumas unicamente em filhos obstinadamente rebeldes, pois ela não desfaz seus maus impulsos, apenas os detém por um tempo, mas ele eclode quando não há mais a repressão, e com força maior. Com o crescimento, o bom filho vê que seus pais somente trabalharam por seu bem, mas o filho mau usa algum descontrole dos educadores para justificar suas más ações, dizendo que resultam de traumas. Pessoas bem intencionadas, mesmo com traumas, lutam contra eles e vencem.
Apesar da indignação que muitas vezes senti, jamais deixei de amar meus pais e tê-los como guias irrepreensíveis e autoridades insuperáveis. Afinal, todos cometemos erros e excessos vez ou outra. Os governantes e as autoridades são extremamente austeros e cometem erros e excessos todo o tempo, mas, rotineiramente, vêm à público pedir votos, desejosos de que a população já tenha esquecido seu exageros e truculências.
Portanto, apesar de alguns excessos dos nossos pais, isso jamais os desqualificou. De qualquer forma, jamais me passou pela cabeça que qualquer lei fosse capas de substituí-los e, tampouco, que algum “conselho”, “tio ou tia” institucionais pudessem ser mais acolhedores e protetores que eles, que se dispunham a passar a noite a me assistir e correr a qualquer hora para plantões e hospitais quando eu queimava em febre. E, diga-se de passagem, se fosse o caso de, tendo os meus pais vivos, avós, tios e tias genéticos, ter sido posto sob a tutela de quem quer que fosse, que não eles, teria tomado essa arbitrariedade como ofensa e teria ficado profundamente magoado com decisão tão repugnante. Muito menos então pensaria em denunciar qualquer um de meus pais, avós ou tios por maltratos por causa da austeridade na educação que nos deram. Jamais seria tão insano ao ponto de me pôr sob a proteção de pessoas estranhas e indiferentes, unindo-me a desconhecidos ou instituições frias para submeter meus pais em vez de submeter-me a orientações deles, como Deus diz que é justo, sendo que a própria Bíblia diz que “o pai que afasta a vara aborrece o filho” e que “a vara não matará a criança”.
De maneira nenhuma e de nenhuma forma compartilharia minha cumplicidade com os vizinhos, a sociedade, o Estado ou as instituições em vez de com meus familiares mais chegados. De forma alguma seria mais leal ao Estado do que aos meus pais e família. A lealdade e patriotismo começam na família. Pessoas que traem seus familiares, entregando sua lealdade a instituições, traem a si mesmas, pois nenhuma instituição será mais acolhedora e confiável que a própria família, ainda mais se os pais se esforçam para educar bem. E a boa educação não é administrada com permicionismo. Pessoas que traem seus familiares a favor da lealdade a instituições logo conhecem a austeridade dessas instituições e cedo descobrem que elas não são nada amistosas, tampouco acolhedoras e perdoadoras. Quem não é leal primeiro a sua própria família, muito menos será leal para com a vizinhança, a sociedade, as instituições, o governo e a Nação. Quem trai seus próprios familiares, trai a qualquer outro.
Quem procede falsamente para subjugar seus pais, cava a maior das maldições para si. Tal pessoa seguirá no caminho do erro, aprofundando-se de tal maneira que a ruína virá de súbito, como se vê nos noticiários. E muitos desses roubam de seus pais, batem em suas mães e, ultimamente, até matam seus genitores.
Filhos que procedem cinicamente para livrar a consciência dura das “inoportunas” orientações de seus pais demonstram grande falta de censo crítico, declaram a pretensão de governar-se a si próprios e manifestam um grande teor de falsidade para fazer de conta que não sabem o propósito da censura e castigo que recebem através do amor paternal.
Muitas vezes, ao ser fustigado, talvez, por denúncia de professores, parentes ou vizinhos, jurei para mim que quando tivesse meus filhos não os trataria assim, mas jamais pensei que lhes permitiria assumir o papel de pais, muito menos bancar autoridade dentro de casa, faltar com o respeito para com qualquer pessoa, especialmente adulta ou mais velha e, tampouco, permitiria que fizessem o que quisessem e fossem onde bem entendessesm. Entretanto, me surpreendo com minha própria geração, da qual pensava ser o resquício da boa educação, os remanescentes do tempo em que os pais eram os pais e os filhos eram os filhos. Percebi que grande parte deles envelheceu, mas ainda não reconhecem que todas as vezes que seus pais lhes proibiram algo foi para sua proteção; não admitem que na maioria das vezes em que foram fustigados seus pais tinham razão, e, além disso, não aceitam que o simples fato de nossos pais terem nos dado a vida, terem-nos acolhido, sustentado, dado educação e se esforçado por nós é motivo mais do que suficiente para amá-los incondicionalmente, sermos seus discípulos, cúmplices e continuarmos nos submetendo aos conselhos com os quais eles nos guiaram até aqui.
É fato que aos pais cabe a obrigação de bem cuidar, sustentar e manter seus filhos. Isto foi estabelecido por Deus e não por leis civis. Entretanto, aos filhos cabe respeitá-los, ter reverência por eles, obedecê-los, submeter-se a eles e honrá-los sempre. Jamais humilhá-los, censurá-los, repreendê-los, criticá-los e desmoralizá-los será direito dos filhos, pois isso não é direito.
Descubro, a cada dia mais decepcionado, que a maioria desses pais da minha idade, que hoje já são avós, são ainda revoltados com seus pais, seja pelas coisas que não puderam lhes dar na infância, seja pela austeridade com que lhes educaram e pelas coisas que não lhes permitiram fazer. Coincidentemente, percebo que muitos deles fumaram maconha e ainda defendem o uso, sendo muitos usuários ainda hoje. Muitos deles também cheiram cocaína, injetaram alguma coisa e beberam e ainda bebem muito. Descubro cada dia que muitos deles não deixaram esses maus hábitos nem depois de saírem da adolescência e da faculdade; nem depois passarem dos trinta anos e seus filhos irem para a faculdade. Vejo-me decepcionado ao ver que são eles os incentivadores dos “pequenos ditadores”, dos quais já se falava há mais de vinte anos, que tocavam o horror com seus pais, deixando-os “baratinados”. São eles mesmos que introduziram a ideia de que a criança tem direito a privacidade, a escolha própria e pode fazer todo que quiser, não podendo ser reprimida em nada, muito menos censurada, nem impedida, para não traumatizar e ter sequelas no futuro. E, para piorar, é com o apoio deles que leis têm sido aprovadas para conter os pais que querem realmente educar seus filhos para a vida, para a responsabilidade, para a moral, para a honestidade, para a lealdade, para a honra e civilidade. Sim, porque existe um grande abismo entre educação, correção, repressão e maus-tratos. Entretanto, eles distorceram tudo e as leis que deveriam coibir e punir os verdadeiros maus-tratos servem para apoiar a criança na rebeldia, pois arrolam como maus-tratos a censura, a repressão e a correção.
Pior é que esses pais incoerentes, bem como seus filhos já pais, igualmente insensatos, embora queixosos dos filhos, satisfazem a todas as suas vontades, convocando até o poder público e um plantel de mentiras e distorções para incriminar algum professor disposto a defender a ordem e o respeito contra esse tsunami de delinqüentes "filhinhos de papai e mamãe" que enxameiam as escolas desafiando a autoridade de munitores, mestres, diretores e Deus. Ficam furiosos com qualquer um que se atreva a censurar e coibir a rebeldia de seus “anjinhos”. E, após pleitearem por seus tiranos, voltam para casa e, como prêmio, encontram seus protegidos a exigirem-lhes sacrifícios (coisas) e reverência, censurando-os, criticando tudo que fazem, repreendendo-os pelo que fazem ou deixam de fazer, explorando-os, controlando-os, batendo-lhes na cara e até matando-os quando não lhes dão o que exigem.
E, assim, o mundo se enche de pessoas com as quais não se pode contar, indivíduos que comprometem-se premeditando não cumprir e sem a menor consideração para com a palavra empenhada. Os órgãos públicos se enchem de fncionários públicos que pensam fazer favores a população e as ruas são dominadas por policiais que pensam ser deuses. De igual modo, encontra-se médicos sem consideração por seus pacientes e, tampouco, pela saúde deles; que não os ouvem, não examinam; não receitam o remédio que realmente curaria; demonstram completa falta de conhecimento e nenhum compromisso para com a verdade. Arquitetos e engenheiro que constroem edifícios sem colunas e vigas; instrutores de auto-escola que ensinam a dirigir somente em terceira marcha e psicólogos que avaliam pessoas através de gabaritos, como se eles fossem computadores e suas respostas estivessem condicionadas a um padrão, dando sempre a mesma resposta, sem interessar os diferentes fatores das questões.
Ao ser chamada pela psicóloga da escolinha do neto, de quem é responsável, uma amiga de cor negra foi advertida pela “profissional” de psicologia que o menino deveria estar passando por algum transtorno em casa, pois, ao, avaliá-lo através de um desenho que solicitou que fizesse, ela observou que o garoto coloriu de negro as pessoas que ilustrou, explicando que, segundo seu manual, uma criança que pinta alguém de negro dá indício de sofrer transtorno.
Minha amiga lembrou a psicóloga que um menino de cor negra em uma família de negros representará os membros de sua família como negros. Esse argumento tão elementar, porém, em nada mudou a convicção da psicóloga, que continuou insistindo que o menino sofre transtornos em casa.
Isto seria hipnose? Deve ser, pois seguidamente se vêm profissionais aqui e ali, nesta ou naquela profissão, agindo como autistas, como quem não ouve, não vê e não pensa. E laudos de profissionais assim decidem sobre crimes contra mulheres, idosos e crianças; decidem a vida de vítimas, culpados e inocentes. O pior é que pessoas como essas são legisladores, administradores de países, estados, cidades, instituições e empresas, sendo cada dia mais normais, aceitáveis e simpáticos aos olhos da população, que, nesse emaranhado de distorções, vai perdendo o referencial de coerência.
Pessoas com toda essa capacidade de raciocínio são esses filhos mimados, pequenos ditadores, tiranos e rebeldes das duas últimas gerações, e eles são promotores de justiça, juízes, policiais, ensinadores, enfim, dirigentes do mundo. E que mundo esse seu estilo liberal (ou libertino) está criando. Um mundo onde a criminalidade cresce na mesma medida que a repressão aumenta. E eles mesmos vão se revelando criminosos.
Pense nisso, no tipo de conceitos estranhos que lhe estão sendo incutidos pela mídia e as pessoas e você está admitindo e reproduzindo como normais.
Wilson do Amaral