O PONTO DE VISTA DE QUEM SOFRE

Todo sofrimento, seja a dor física ou psicológica, é percebido e medido psicologicamente, sendo, por isto, sempre dimensionado pelo ponto de vista do indivíduo, que está atrelado ao seu centro de interesse. Melhor dizendo, é dimensionado de acordo com a estima que o indivíduo tem de si mesmo. Tal colocação, porém, fica mais bem definida se dissermos que o grau de sofrimento de cada indivíduo é determinado com base em seus interesses pessoais, que são determinados com base no valor que determina de si mesmo, querendo dizer que quanto maior for a soberania com que a pessoa avalia a si mesma e quanto mais elevado for o padrão de vida e conforto que desfruta, maior será a dor que sentirá em cada situação tida por adversa. Digo tida por adversa porque a determinação de adverso ou não adverso também depende da avaliação individual e essa determinação sempre será feita de acordo com o ponto de vista pessoal da cada indivíduo, sendo por isto que situações adversas para uns não são para outros.

Para exemplificar, basta observar as diferenças entre as classes sociais. Um dos maiores fatores causadores de preocupação, angústia, depressão e sofrimento nos ricos é a expectativa ante a possibilidade de empobrecer e ficar sem nada. Tal expectativa, porém, não causa nenhuma inquietação nos pobres. Aliás, a própria definição de nada dos ricos diverge em muito da dos pobres. Em regra, quem tem dez bilhões deprime se perde um, julgando-se, inclusive, em calamidade. Quanto ao pobre, porém, se tiver cem reais e perder todo ele, conforma-se com a certeza de que logo ganhará outros cem.

Seu Guilherme Silberfarb, personagem heróico do meu primeiro livro, entrou em profunda depressão após descobrir que por vinte anos o sócio o roubou e nem mesmo o fato de nesses vinte anos, apesar do roubo do sócio, ter adquirido setenta apartamentos e mais uns pavilhões foi capaz de livrá-lo do sentimento de calamidade. Como, porém, pôde ser assaltado com tal sentimento? Simplesmente porque após vinte anos esqueceu-se do rigor da segunda guerra que suportou na Polônia quando menino, bem como da pobreza e privação que suportou com seu pai nos primeiros anos no Brasil. Assim, vinte anos depois já não olhava as circunstâncias a partir do prisma de quem não tem nada a perder e está sujeito a Providência do dia-a-dia, mas olhava-as do prisma de alguém acostumado a ter muito mais do que precisa e luta unicamente para garantir a perpetuidade do padrão de vida.

O fator a mais nas duas circunstâncias é o sofrimento, que na circunstância desfavorável da guerra e pobreza não existia. Se tivesse, porém, ficado rico, mas sem se esquecer que outrora não tinha nada, mas, apesar disso, vivia normalmente, poderia perder um pouco, quase tudo, ou até mesmo tudo, mas nada disso o faria sofrer. Logo, para termos tudo e a riqueza nos fazer bem, precisamos ser capazes de viver sem ela.

Certa vez, em 1980, enquanto vagava no centro de São Leopoldo, antes de entrar para a aula na escola noturna que estudava, na rua principal da cidade, vi uma mulher esbravejando para o marido, reclamando do carro que ele lhe dera, um Chevrolet Diplomata, com direção hidráulica, o carro mais luxuoso, confortável e fácil de dirigir daquele tempo. E, apesar de que para a maioria aquele carro era um sonho, carro de executivos, presidentes e magnatas, na visão dela ele era “uma tranqueira”, “uma geringonça”, “uma lata velha”. Disse isso a chutar a porta, armando o barraco com tudo que tinha direito em plena rua e na presença de muitos passantes.

Seria, porém, o carro tudo o que ela disse? Estaria estressada pela dificuldade em dirigi-lo? Teria sofrido por causa das condições adversas daquele carro? O carro lhe impusera realmente condições adversas? Provavelmente não. Certo é, porém, que desejava sobrepor-se ao marido e aproveitou para exibir-se aos transeuntes como alguém acima, até mesmo dos que dispunham de um carro como aquele.

Como fazer, porém, mostrar que situações adversas para uns são normais para alguns, podendo até ser oportunidades para outros? Não quero dizer que as situações adversas de alguém são normais aos olhos de um observador, mas pretendo dizer que na mesma situação outras pessoas pensam e sentem diferente.

Disse o doutor Rodrigo Silva, apresentador do programa Evidências, da TV Novo Tempo, em uma de suas palestras em Dallas, que, em geral, os que vivem em boas circunstâncias reclamam e exigem coisas. E disse isso mostrando os membros da Igreja na África e países islâmicos, pessoas que andam quinze ou mais quilômetros para ir à igreja, degustam até mesmo a programação mais comum, querendo permanecer para ouvir e ver mais mesmo depois de ultrapassado o horário do almoço, enquanto nos países de melhor nível, onde se conta com ônibus, carros particulares e tudo mais, inquietas, as pessoas no culto não param de examinar o relógio e facilmente reclamam se o pregador ultrapassa o horário de encerramento.

Certamente que pessoas como aquelas da África esperariam felizes por horas em uma parada de ônibus se soubessem que em algum momento o coletivo passaria e os levaria. Nós, porém, se somos obrigados a esperar mais que dez minutos, achamos isso um ultraje.

Como poderia o sofrimento servir de castigo de Deus se ele é uma questão de ponto de vista?

Dizendo que o sofrimento é uma questão de ponto de vista, não digo que o sofrimento não existe, mas que muita coisa que é tida por sofrimento não é sofrimento, mas também digo que até o sofrimento real é maior ou menor dependendo da forma como a pessoa o encara.

Deus castiga através do sofrimento? Esta foi a pergunta de minha esposa outro dia. Não, foi o que respondi. Castigos presumem punição e, segundo a Bíblia, a punição somente virá no último dia, o dia do juízo final, de uma vez por todas para todos. Deus jamais nos castigará para pagarmos por pecados que cometemos seja contra quem for, porque somente através da punição sofrida por Jesus na cruz nossos pecados são cancelados. Mas Deus pode castigar com objetivo didático. Na Bíblia Ele diz que castiga ao filho que ama. Como será isso? Certamente que o castigo que Deus atribui a si vem em forma de conseqüência de nossas próprias ações. Há pessoas, porém, que não fazem mal, mas são constantemente atingidas por adversidades testemunhadas por terceiros. Não esqueçamos, porém, que adversidades, bem como seu tamanho e intensidade, são uma questão de ponto de vista; que os problemas alheios nos vêem porque somos habilitados para resolvê-los e eles são uma forma de nos exercitarmos (pessoas que não ajudam seus vizinhos, que não têm uma palavra, uma resposta, um conforto, também não atraem problemas alheios); que o mal que o assaltante nos infringe é de iniciativa do próprio assaltante; e que os entraves que somos obrigados a encarar por nós mesmos são empecilhos que precisamos remover para seguir adiante, sendo também o treinamento que nos habilitará para empreendimentos maiores.

De qualquer forma, o sofrimento é uma questão de ponto de vista e cada um define para si o que é e o que não é adversidade e sofrer. Quando as coisas não fluem com a facilidade que queremos e quando não alcançamos os objetivos que desejamos, facilmente julgamos como adversidade e sofrimento, presumindo, muitas vezes, que Deus está a pôr empecilhos entre nós e nossas metas e o faz para nos castigar. Nesse caso então, o sofrimento é a insatisfação de nossa vontade (a não concessão de Deus ao que queremos) e a desfacilitação de nossas tarefas. O sofrimento, porém, não é isso, mas é a sensação que sentimos por causa disso – sensação de impedimento, de aprisionamento, de detenção, de estarmos amarrados a uma corda como o cachorro; sensação de desrespeito a nossa liberdade. Sentimos-nos de pés e mãos atados e isto produz cansaço, ansiedade, indignação e raiva.

Observemos, entretanto, quanto impedimento há entre o mineiro e o diamante que ele deseja. Esse impedimento, porém, é inerente a sua atividade de achar diamantes, faz parte dos atributos da função de garimpar. O diamante jamais seria precioso se fosse fácil de achá-lo e sacrificar-se na busca nada mais é do que a profissão de quem o busca.

Se, porém, deixarmos a atitude de quem se julga o maior dos sofredores e, ao sentirmos que nossa vontade não está sendo satisfeita e nossos empreendimentos não estão dando certo – se nos vemos num dia em que tudo que fazemos dá errado e presumimos que o não dar certo é um efeito externo (alheio a nossa vontade e independente da mecânica de nossos atos), porque Deus está dificultando as coisas para nos castigar, devemos também pensar qual seria o propósito dEle com isso. Se admitimos então que o propósito dEle é que nos reposicionemos e acertemos para o sucesso, juntamente com essa admissão devemos lembrar como Ele espera que façamos as coisas para que tudo dê certo; qual será a vontade dEle quanto ao nosso proceder, como Ele diz que devemos fazer. Então iremos à Sua Palavra, à Bíblia, o manual do viver perfeito, e conheceremos Sua vontade, quanto a idolatria, por exemplo, (se pomos o material acima das pessoas), quanto a honrar pai e mãe (um bom padrão de conduta para acertar em todas as áreas), quanto ao amor ao próximo (se somos indiferentes quanto aos nossos companheiros) e assim por diante.

Se formos irritados e fizermos as coisas com pressa, não faremos com a precisão necessária e elas ficarão mal feitas ou não darão certo; encaixaremos mal, colocaremos de qualquer jeito, bateremos com muita força, não atentaremos para o que fizermos, deixaremos passar detalhes, etc., e, por fim, cairão, quebrarão, desatarraxarão e assim por diante. Se não temos paciência, não esperamos o tempo de cada coisa e julgamos que tudo dá errado apesar de que, aos nossos olhos, fazemos tudo certo. E nossa impaciência não nos possibilita nem mesmo parar para pensar e ver que agimos mal. Precisamos rever nossos conceitos e atitudes.

De qualquer forma, os diferentes tipos de vida e diversas formas de nos conduzir e fazer as coisas que escolhemos impõe dificuldades maiores e menores, bem como vantagens maiores e menores. Quem decidir ser alpinista, certamente terá maior dificuldade de locomoção e sofrerá muito mais com o frio, a solidão e muitas coisas mais que não sofre quem decide ser trabalhador comum em uma fábrica de sapatos. Entretanto, esse trabalhador comum de fábrica de sapatos jamais usufruirá das vantagens decorrentes do alpinismo. Quando me feria com o martelo ou outra ferramenta na construção que trabalhava com meu padrasto quanto adolescente ele dizia que tal coisa era “cavaco do ofício”, querendo dizer que não era castigo, nem adversidade, mas acontecimentos inerentes a profissão.

Portanto, na maioria das vezes, não nos damos conta que a dificuldade que se apresenta na execução de uma tarefa é justamente atributo daquela execução e não tem como ser diferente. Quem tem pouco dinheiro pode facilmente comprar uma casa em lugar afastado, tendo, porém a dificuldade de locomoção e os entraves da rua de chão, do barro e da poeira. Apesar disso tudo, terá sua casa, seu abrigo, seu domínio, sua soberania. Quem tem mais dinheiro usufrui da vantagem de ter uma casa em lugar privilegiado, sofrendo com a desconfiança, a preocupação quanto à inveja alheia, sendo visado pelos ladrões, etc., e o ser assaltado será praticamente uma obrigatoriedade.

Quem será então privilegiado nos dois exemplos? Como disse, ambas as opções oferecem vantagem e desvantagens e o que pode parecer sofrer para um é nada mais do que corriqueiro para o outro (como o andar a pé, por exemplo) dependendo somente da maneira como cada pessoa interpreta a situação que vive.

Enfim, quantas adversidades abatem pessoas que aos olhos dos outros estão em posição privilegiada e essas adversidades nada mais são do que atributos comuns àquela profissão e estilo de vida ou conseqüência dessa profissão e estilo.

Há, entretanto, o sofrimento e dor reais – sofrimento e dor que não dependem do dimensionamento que cada indivíduo dá. Quando somos impedidos por doença, acidente ou outro tipo de tragédia e impedimento, há a dor física e a dor psicológica. A última deriva do susto e medo do momento, bem como da indignação pela ação que nos atingiu, além da raiva pela obstrução de nossas atividades corriqueiras. A dor física, embora seja matemática e deveria ser sentida igual em todos os indivíduos em circunstâncias idênticas, ainda assim pode ser maior ou menor dependendo do indivíduo, pois é também dimensionada pelo ponto de vista de cada um e por isto alguns sofrem mais e outros menos. Sendo assim, percebemos que o sofrer psicológico determina a gravidade e o tempo de restabelecimento da dor física.

Portanto, em última análise, o sofrer não depende tanto de fatores externos quanto depende da maneira como o sofredor o vê, o assimila e o dimensiona, estando tudo isso atrelado ao grau de avaliação da pessoa quanto a si mesma. Se nos julgamos muito soberanos (reis – imperadores), se somos muito altivos, muito exigentes, muito intransigentes, muito mimados, muito excêntricos e muito mancebos, sofreremos muito mais do que as pessoas humildes.

Logo, se seguimos sofrendo mesmo depois de passado o mal verdadeiro, ou sofremos mais que outras pessoas em circunstâncias idênticas, sofremos somente porque produzimos o próprio sofrer. Podemos, porém, mudar nossa forma de ver e sentir as coisas, então sofreremos muito menos. Experimente.

Wilson do Amaral