Meu final feliz

Meu final feliz

Impossível experimentá-lo a sós, independente da realidade social de que sou também responsável.

Impossível viver um verdadeiro e gratificante final feliz. Consigo experimentar alguns momentos presentes de felicidade, mas sempre incompletos, e sou continuamente resgatado pela imanente realidade social e desumana que oprime, segrega, exclui e degrada a dignidade e a existência humana.

É irrelevante a minha felicidade.

Entendo vergonhosa a felicidade dos omissos.

Entendo maravilhosa a felicidade daqueles que a tenham conseguido verdadeiramente alcançar.

Entendo repugnante a felicidade daqueles que se escondem por detrás da sua pseudo incapacidade de lutar e participar da transformação do estado social vigente.

Entendo obscena a felicidade daqueles que ingenuamente acreditam que os que hoje sofrem, o fazem simplesmente para desfrutar um amanhã transcendentalmente feliz.

Entendo indecente a felicidade daqueles que de forma crédula acreditam que toda a realidade de exclusão social seja parte de um plano sistêmico maior e que não nos é possível entender, e por isto nos é impossível questionar.

Como ser feliz vendo a miséria social, cultural e humana, independente desta indigência humana estar fisicamente próxima ou distante de mim.

Não creio em destino, motivo ou razão superior para uma existência planejada ou não.

Entendo possuir uma única existência, uma única oportunidade de experimentar meu viver. Não tenho segunda chance, nem mesmo segunda época, por isto não preciso colecionar bônus, preciso sim trabalhar na construção de minha dignidade, abrindo portas e dando apoio na dignificação da vida social e natural.

Não necessito de nenhuma razão superior, de nenhum plano sistêmico ou mesmo de nenhum motivo transcendental para viver, ou para valorizar ou direcionar meu viver. Basta-me o amor a vida, em toda a sua essência, para ter vergonha do que fizemos de nossa sociedade humana. Esta vergonha deveria ser ainda maior posto que sou desta sociedade representante.

Como motivo de viver basta-me alguma ousadia de tentar algo contra a destruição da condição humana, basta-me alguma revolta contra o atual estado social de exclusão humana, e mais recentemente somam-se como motivos de viver, meus filhos.

Aos que precisam de algo maior, me curvo, pois bastam-me as coisas menores, naturais e imanentes para me fazer ver a vergonhosa ausência humana com que tratamos a vida neste planeta.

Aos que creem em algo depois de nossa existência material, também me curvo, basta-me sentir o presente para florescer em mim a revolta pelo desumano.

Aos que acreditam na esperança, invejo-os, e também me curvo, mas o que percebo é a esperança como maquiagem para a manutenção do atual estado de desumanidade. Curvo-me assim aos esperançosos, entretanto a natureza não me deu inteligência para entender alem do que racionalmente e criticamente percebo. Talvez por incompetência ou por inaptidão, não consigo ter nenhum apreço pela esperança. Entendo que o presente futuro nunca será realizado, pois realizamos apenas o contínuo espaço temporal do momento presente, é onde posso agir. A vida ousa-me mostrar que é somente no instante do agora que posso existir e atuar. Uma vez que somente realizo meu viver no presente, este me obriga a trabalhar, não a esperar, este me obriga a planejar, não a esperar, este me obriga a realizar, não a esperar, este me obriga a transformar, não a esperar, este me obriga enfim a me despir de esperança e a me vestir de construtor.

Se 500 vezes o castelo de minha construção desmoronar, 501 vezes devo tentar reconstrui-lo, não por mim, ou pela vaidade de fazê-lo, mas sim em nome de todos aqueles que precisem deste castelo para encontrar um pouco de dignidade humana e de satisfação social.

E se o Castelo não desabar, que bom. Devo partir para novas construções e transformações. Devo abrir estradas, caminhos para inclusão social. Devo construir portos para que vidas humanas possam ali ancorar. Devo caminhar pela realização emergencial do viver, devo trabalhar pela essência da vida, não somente da minha vida ou pela vida de meus filhos, nem somente devo trabalhar pela vida de meus familiares ou amigos, em última análise nem mesmo somente pela vida humana, devo trabalhar com vontade pela essência da vida, em todo o seu esplendor imanente.

Nos momentos em que a escolha seja necessária, devo ter a capacidade de escolher pelas obras e construções que maximizem a dignidade da vida, por um maior número de seres, por uma maior área geográfica e por um maior espaço de tempo possível, independente de espécie, raça, cor, nacionalidade, crenças, condição social, opção sexual ou mesmo princípios filosóficos.

Por definição respeito a vida, e por isto respeito em especial os seres humanos, respeito os que comigo comungam, ou mesmo os que de mim discordam, respeito os crentes, respeito os que buscam ou acreditam em uma razão superior, respeito os que acreditam em vida depois da morte, respeito os que depositam valores na esperança, simplesmente por que são seres humanos e merecem respeito por isto, mas ouso não concordar com suas argumentações.

Meu final feliz, se é que ele algum dia existirá, seria depois de minha morte ter conseguido deixar alguns exemplos, poucos que fossem, mas que pudessem ajudar na elevação do valor da vida.

Arlindo Tavares
Enviado por Arlindo Tavares em 22/01/2012
Reeditado em 22/01/2012
Código do texto: T3454314
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.