Do Lado de Cá da Mesa
Há quem sonhe mais com isso do que eu mesmo. (A ponta do meu tênis preto tem uma mancha branca de pasta de dente). As pessoas não são tão numerosas, e nisso há uma certeza irretorquível de uma admiração impagável. (O cotovelo esquerdo da minha blusa preta tem uma mancha de caldo de feijão). Essas pessoas - que não são muitas, mas são muitas, e são criteriosamente selecionadas por um bom gosto inenarrável - ficam por horas em uma fila que nem é tão grande para ter cinco minutos de atenção de quem - alguém que talvez esteja um pouco enfadado - está com a glória. (No centro da minha blusa, nas laterais do caminho que o zíper faz, na altura do plexo solar, há uma mancha de creme de milho, ou cheddar, ou maionese). O que acontece é que não há como evitar o pensamento de que talvez um dia seja eu do outro lado da mesa, com as pessoas fazendo fila com livros com meu nome na capa em mãos, querendo cinco minutos de uma conversa que não saberei ter e uma dedicatória que não saberei escrever. (A esta altura a paciência dos que ficam sob a luz quente dos projetores [não sei o nome exato dessas caixas quadradas de luz quente] é posta em jogo: "- mas ele está ali, tão perto e atencioso e bêbado!..." - e a esta altura eu talvez esteja com mau hálito, com a calça jeans com uma mancha clara de requeijão). E já na mesa, com os livros em poder de seu criador, que escreve palavras de gratidão e afeto a pessoas que em sua maioria não conhece - ele não me conhece -; com um copo com um golinho de uísque restando, com copos de plástico com amendoins coloridos; e já na mesa eu me ponho a imaginar como será sentar do outro lado algum dia.
E meu pensamento sobressalente é o de lembrar de usar uma roupa com menos manchas se houver tal ocasião.
10/12/2011 - 20h35m
(No lançamento do "Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente", do "Tio Ieiêncio" [Lourenço Mutarelli])