E o Delírio Acaba

O ato de você imiscuir-se nos meus pensamentos vez ou outra já não era mais novidade, para mim. Não, porque num raio de duas galáxias, qualquer homem que se deparar com seu tranqüilizador semblante irá, uma hora ou outra, cair em quimeras onde você aparece como uma mulher para toda vida. A mulher ideal, com dotes e talentos. Tanto talentos físicos como intelectuais. Nas suas esporádicas - porém intensas - visitas em meus delírios pretensiosos, eu te idealizava, te moldava de acordo com o que eu desejava numa parceira, mas não deixava de atribuir uma personalidade à sua personagem no teatro da minha imaginação. Não sei se atribuía ao seu holograma uma personalidade fidedigna à realidade, mas suficientemente boa - cheia de dualidades, cheia de conflitos internos - para que eu me apaixonasse por ela. Sim, isso acontecia vez ou outra e eu sugava tanto dessas fantasias que logo elas desapareciam e lá estava eu novamente, na dura realidade da solitude. Claro que você não é a única mulher que me inspira pensamentos idílicos e utópicos e libidinosos. Não é, embora seja aquela que tem tudo, mas tudo MESMO que eu poderia sonhar em desejar em ter em uma mulher. Você se infiltra em mim via retina, sobe para o meu cérebro e depois desce e passeia pelo meu corpo junto com o líquido que o coração bombeia. Sinto calafrios quando me imagino de rosto colado contigo; me sobe um frio na espinha enquanto outro frio desce pelos meus braços arrepiando-me os pêlos. Com um mundo tão pequeno dentro de um mundo tão pequeno, me impressiono em nunca ter repousado os olhos na sua carne. Eles só descansam em megapixels que, tenho certeza, alteram a magnitude da sua exótica beleza. Começo falando de um "vez ou outra" que você aparece nas minhas memórias. Algo mudou. Algo se instalou. A freqüência e a intensidade das fantasias aumentaram. Eu já não estou mais afastando o nosso namorico inexistente da minha cabeça: deixo fluir e vivo ele intensamente, tão intensamente que chego quase ao ponto de acreditar que ele é real. Se o vagão cheio de casais me olha como se eu fosse um ET por eu estar sozinho no sábado à noite, eu dou de ombros, pois você estará me esperando na catraca. Mas na catraca não há nada, só o segundo capítulo da minha solitária novela, que é "onde nos abraçamos, nos beijamos e saímos do Metrô de mãos dadas. A gente desce a Augusta e divide uma tigela de açaí no Vegacy; trocamos presentes na Maze; Depois a gente sobe a Augusta e mergulhamos juntos no mesmo submarino da apreciação das artes expostas no Conjunto Nacional. Exposição de desenhos de crianças da 4ª série. O tema dos desenhos: A Vida no Circo. O mais bonito, eleito por você, é aquele com a lona vermelha e amarela, de picadeiro com arquibancada azul, onde prósperos senhores de bigodes e cartolas sentam na primeira fileira e contemplam os trapezistas erguendo o elefante enquanto mais abaixo, o leão salta por entre um anel de fogo e os palhaços brincam com malabares. A gente invade a Livraria Cultura e deitamos lado a lado entre as almofadas em forma de frutas. Você folheia Cartas a Um Jovem Poeta enquanto folheio Hergé. Seu hálito é cálido e adocicado e invade as minhas narinas quando você lê em voz alta:

"E se o reflexo no lago

A imagem contorna,

Só ele a descobre.

Nesse reino dúbio e vago,

Toda voz se torna

“Imortal e nobre.”

- O que é isso?

- Sonetos a Orfeu.

- "Toda voz se torna imortal e nobre."

- Gostou?

E sua voz em minhas fantasias é a mesma da Caithlin de Marrais. É, da vocalista daquela banda que adotou o nome de quem escreveu os Sonetos a Orfeu.

E de repente estamos na sala de espera do motel e entra um casal de velhos nordestinos. Ele, com uma saca de arroz nas mãos e ela com uma trouxa de roupas na cabeça. Nada precisava ser dito entre nós. A represália da explosão de gargalhadas inflou nossas bochechas. Já no quarto 1409, caímos na risada à exaustão:

- Mas que velhinhos mais safadinhos!

Conversa de botas batidas.

- Promete que não vai entrar no banheiro? Tenho uma surpresinha pra você - Falou, erguendo sensualmente as sobrancelhas. Uma mulher que consegue incitar sensualidade até com um erguer de sobrancelhas decerto é pra casar.

- Prometo! Me olho no espelho do teto. Ouço o barulho do chuveiro sendo ligado e desligado inúmeras vezes.

- Quer ajuda?

- NÃO! FICA AÍ – bradou, para em seguida falar em voz mais suave - Mas que inferno de chuveiro! Quando ela finalmente conseguiu ajustar a temperatura, entrei em ação: coloquei uma vela em cada canto do quarto e acendi alguns incensos. No som, rolaria desde o Bloco do Eu Sozinho ao Quatro. E o principal: fiz uma trilha que a traria do banheiro até a cama. Uma trilha de pétalas de rosas."

E o delírio acaba.

25/05/2010

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 06/12/2011
Código do texto: T3375359
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