Uma história que vale a pena ser contada
Há alguns meses atrás, conheci o Samuel (chamemos-lhe assim) em circunstâncias que para o caso não interessam nada. Um belo homem, imediatamente percebi: um daqueles homens que convocam um olhar mais prolongado. Além do mais, também era culto, ambicioso e bem sucedido profissionalmente. Em suma: parecia ser uma daquelas pessoas que dormem acondicionadas na palma da mão de Deus.
As marcas, contudo, denunciavam-lhe uma geografia emocional diferente. Pois, por mais esforços que fizesse, Samuel não conseguia esconder a mancha verde-azulada que lhe entumecia a órbita ocular e a expressão apagada do rosto.
A história de Samuel é fácil de condensar em palavras; seguramente mais fácil do que a ele há-de ter sido vivê-la. Procurarei ser fiel à sua narrativa, onde, tanto como as palavras, os silêncios angustiados tiveram voz.
Aos trinta e cinco anos, Samuel apaixonou-se "à primeira vista". Foi uma paixão “daquelas”: louca e alucinada, completamente avassaladora. Tal nunca antes lhe havia acontecido e, por isso, Samuel achou que era algo especial e que merecia ser acarinhado. Soube assim, sentiu, que tinha de lançar-se para o universo dessa paixão e, mesmo sem sinais seguros de ser correspondido, declarou o seu intenso afeto a António (chamemos-lhe também assim).
Neste momento crucial aconteceu aquilo que mais tarde Samuel interpretaria como a pura insanidade do ser humano. É que António, o charmoso destinatário da paixão, também se sentia fortemente atraído por Samuel, contudo não gostava de ser homossexual; intimamente, cultivava até uma certa tendência homofóbica.
Ainda assim, deram início a um conturbado relacionamento amoroso; que com o tempo de foi tornando cada vez mais complexo e complicado, feito de encontros sublimes e afastamentos violentos. António parecia gostar de atrair Samuel e, quando este cedia, fazia questão de o afastar e humilhar: lançando um espectro de imoralidade sobre a paixão de ambos.
Samuel tentava convencer-se de que o afeto que sentia e que, em certos momentos era tangível em António, havia de ajudar este a superar a crise de identidade, que lhe interpretava no comportamento. E, com base nessa crença, condescendia às variações de humor, às humilhações, até ao desprezo com que António o tratava.
Mas um dia o impensável aconteceu: António espancou-o furiosamente, enquanto lhe chamava “ratazana maricas”.
Samuel sentiu o seu amor a perder-se através de cada golpe vibrado no seu corpo pelas mãos de António. E, pela primeira vez na vida, sentiu vergonha.
Vergonha de não ter respeitado o seu afeto, de não o ter protegido das mãos de um fraco que jamais o poderia honrar e dignificar. Foi então que Samuel sentiu António indigno de si e do mundo que lhe pertencia. E foi, nesse preciso instante, que teve a certeza que António irrevogavelmente o perdia.
Dois dias mais tarde, depois de horas de profunda depressão e indecisão, Samuel apresentou queixa na polícia contra António e relatou, sem vergonha de expor o seu amor, toda a agressão de que fora vítima.
Samuel nunca mais viu António e a ausência, outrora tão difícil de suportar, tornou-se-lhe irrelevante.
Hoje, Samuel surge sorridente.
“Encontrei alguém especial!”, confidencia com um novo brilho nos olhos, “Uma pessoa que tem orgulho de mim e do nosso amor!”
Esta história, como já disse, simples de contar, encerra quanto a mim um valioso ensinamento; e que é este:
“Só merece ser amado quem ama orgulhosamente!”
Samuel descobriu-o no meio de um tempestuoso vendaval e foi isso que o salvou e acabou por lhe restituir o sorriso.
E que belo sorriso é aquele que hoje lhe ilumina os olhos!...
Texto publicado originalmente em:
mundodasnoitesbrancas.blogspot.com