Da Corrupção ao Lucro: Dois Lados de Uma Moeda

É generalizada a crença de que a corrupção é um mal. Ao mesmo tempo, a maioria assente que todos, enquanto agentes econômicos, busquem o lucro como razão de ser. Da minha parte, penso que corrupção e lucro são instituições com diversos aspectos em comum. Aliás, acho que compartilham tanta coisa que não aceitar a corrupção ao mesmo tempo em que se aceita o lucro chega a ser contraditório. Vou tentar mostrar como, em essência, nos dois casos há repetição de três passos básicos:

1. O corpo social produz utilidades que são ofertadas no mercado como bens e serviços.

2. Parcela dessas utilidades é retirada da fruição direta de quem as produz.

3. Essa parcela é usada para satisfazer os interesses particulares de atores privilegiados.

Para tanto, segue representação esquemática de cada um dos institutos. Ao final da exposição de como cada um deles está associada ao esquema acima, é evidenciado entre parênteses o número a que se refere. Antes dos esquemas, no entanto, é preciso fazer breve consideração sobre o que é corrupção.

Corrupção não tem uma definição precisa. Certo é que a vantagem auferida pelo corrupto não precisa ser pecuniária. No entanto, a forma mais comum de corrupção é o emprego de recursos públicos para satisfazer interesses privados. É dessa corrupção que irei tratar (tanto por ser a mais comum - e mais condenada - quanto por ser a que se opõe mais diretamente ao lucro).

A dinâmica da corrupção pode ser simplificada da seguinte forma. O corpo social produz utilidades que são ofertadas no mercado como bens e serviços (1). Parte dessas utilidades é retirada da fruição direta dos indivíduos por meio de tributos (2). Essas utilidades devem ser devolvidas para fruição dos indivíduos por meio de serviços públicos. No entanto, o ato de corrupção impede esse retorno. Antes, tais utilidades são desviadas com o propósito de satisfazer o interesse particular do corrupto. Ou seja, as utilidades geradas pelo corpo social servem para atender ao interesse particular de quem pratica corrupção (3). Em suma:

1. O corpo social produz utilidades que são ofertadas no mercado como bens e serviços.

2. Parcela dessas utilidades é retirada da fruição direta de quem as produz por meio de tributos.

3. Essa parcela é usada para satisfazer os interesses particulares do corrupto.

A dinâmica do lucro não é muito diversa, embora seja um pouco mais complexa. O corpo social, pelo trabalho, produz utilidades que são ofertadas no mercado como bens e serviços (1). Na relação de trabalho, parte dessas utilidades é devolvida ao trabalhador na forma de remuneração e outra parte é destinada a formar o lucro que será auferido pelo empresário. Para que isso ocorra, é necessário que o valor que cada indivíduo agrega por meio de seu trabalho individual na cadeia produtiva seja maior do que o valor que recebe a título de remuneração. Ou seja, parte das utilidades em pauta é tirada da fruição direta dos indivíduos para suportar o lucro do empresário (2). Por meio da remuneração que recebe, o trabalhador tem o retorno da fruição das utilidades pela aquisição de bens e serviços que encontra no mercado. No entanto, esses bens e serviços também têm em seus preços parcela destinada à formação do lucro do empresário. Por isso, mais uma vez, parte das utilidades geradas pelo indivíduo é tirada de sua fruição direta para suportar o lucro do empresário (2). Assim, como o lucro é gasto da maneira que quem o aufere quiser, na conjugação de dois momentos (o do trabalho e o do da aquisição de bens e serviços), parcela das utilidades geradas pelo corpo social é destinada a atender aos interesses particulares de quem aufere lucro (3). Em suma:

1. O corpo social (trabalhadores) produz utilidades que são ofertadas no mercado como bens e serviços.

2. Parcela dessas utilidades é retirada da fruição direta dos trabalhadores (pela remuneração que recebe, inferior ao valor que agrega ao bem ou serviço na cadeia produtiva, e pelo sobrepreço que paga na aquisição deles via mercado);

3. Essa parcela é usada para satisfazer os interesses particulares de quem aufere lucro.

Isso não quer dizer que as instituições do lucro e da corrupção sejam idênticas. Embora possam ser remetidas ao mesmo esquema, cada uma opera segundo lógicas distintas. O que há de ser ressaltado, no entanto, é que efetivamente possuem sistemática bastante comum de alienação de quem efetivamente produz as utilidades transacionadas no mercado. Pode-se considerar que a análise feita neste texto padece do grave defeito de não deixar consignado que a corrupção é, essencialmente, obtida de forma indevida, ao passo que o lucro não. Porém, penso que esse não é o caso. A qualificação como indevida é mera propaganda capitalista velada contra o Estado. Não há nada na sistemática básica da corrupção que a coloque na condição de indevida em relação à sistemática básica do lucro. A diferença é apenas a de aceitação: a corrupção não é aceita ao tempo em que o lucro o é. Tendo efeitos práticos tão semelhantes, há algo que justifique essa diferença de aceitação?