O LEÃO DENTRO DE NÓS

Antes que descobríssemos nossa majestade humana, agíamos com a simplicidade das pombas, fazendo o melhor sem esperar retribuição e aceitando o mínimo e o máximo com a mesma satisfação. À medida que fomos descobrindo que temos a soberania humana, a soberba em nós foi crescendo proporcionalmente ao aumento da nossa honra e logo começamos a determinar o que é e o que não é tolerável, decretando que não podemos aceitar isso ou aquilo e que toda discordância a nossas idéias, toda insatisfação a nossas vontades e a menor obstrução de nossa liberdade é uma afronta intolerável, passível de ser punida com ação muito violenta, levando o infrator a sentir o maior peso imaginável.

Comumente, descrevemos episódios de desrespeito aos nossos direitos com expressões fortes, encenações exageradas, nervosas e nitidamente irritadas, arremedos desdenhosos, demonstrando desprezo pelo agente ultrajante a fim de recobrar nossa altivez, permeando tudo com exaltada irritação e ódio, como se desejássemos esmagar qualquer circunstância ou pessoa que nos sufoca ou possa nos sufocar o ego, como se assim saíssemos de sob o oponente e nos puséssemos por sobre ele; como se esse agente não fosse uma pessoa e como se não fosse filho do mesmo Deus. Muitos chegam a desatino de pedir a Deus o mal e a destruição do agente de seu ultraje e alguns esperam décadas, revivendo dia a dia o mal que sofreram, até que conseguem retribuir com a mesma moeda, conseguindo a pena de morte de alguém com o pretexto de cobrar por uma vida tirada tirando a vida de alguém. E depois vão para casa dormir tranqüilos enganando-se com a pretensão de terem feito justiça.

Nossa soberba é tal que saímos eretos da lama, nos elevamos sobre saltos altos, com a alma exaltada ao ponto de pôr fogo pelas narinas. Nossa soberba eleva-se ao ponto de obstruirmos o raciocínio, nos impedindo de ver a lógica e comprometendo-nos o conceito de equivalência. Seguidamente nos dispomos como soldados melindrados de belicoso exército, camuflados de espinheiro, com espada em riste, o escudo em punho e o estandarte do ego vergado para guarnecer-nos a soberania sem medir conseqüências, sem ver a quem contra-atacamos, sem dar-nos conta que o rigor que aplicamos não corresponde a ameaça que presumimos sofrer. E, nessa vigilância feroz, desferimos golpes e lançamos dardos envenenados para todos os lados, não nos importando a quem atingimos. No menor pressentimento de ataque, contra-atacamos com golpes tão ou mais destrutivos do que seriam os golpes do ataque que prevenimos.

Em geral, as pessoas que reclamam não têm do que reclamar, pois tudo têm, vivem bem e nada lhes falta. Quando nossa dignidade é respeitada, quando tudo temos e nosso valor é reconhecido, o ego se eleva e logo ruge o leão dentro de nós. Quando nossa soberania é reconhecida, quando nos delegam a menor autoridade, o monarca interior se exaltada e, “cheio de íntimas condecorações”, começa a demarcar seu domínio. E, assim, cegados pela própria razão, muitos de nós se posta de autoridade, inquirindo os direitos pessoais sobre os demais, às vezes, sem ter direito, dando grandes vexames.

Por outro lado, pessoas para as quais tudo falta; para indivíduos acostumados a vida dura, privação e sofrimento, tudo está bom. Se vem alguém de fora, esse é importante, se ganham um livro, recebem um tesouro, se têm um lugar longe para ir a pé, isso é um grande programa e se lhes é dada chance de participar e fazer algo, recebem como grande honra. Para muitos de nós, porém, que conhecemos a dignidade, os outros é que têm que fazer sua obrigação e isso deve ser exigido deles. Porque estamos bem, temos tudo e nos vemos em boa posição, muito sabemos cobrar as obrigações alheias, investigar e apontar os defeitos dos outros, sendo assim essas pessoas insatisfeitas, que vivem a reclamar das autoridades, dos outros e de Deus, embora em meio a um mar de rosas.

Estranha essa maneira soberba de sermos, pois quanto mais temos, quanto mais nossa soberania é reconhecida e quanto mais são respeitados nossos direitos e satisfeitas nossas necessidades, muito mais gratos deveríamos ser, muito mais complacentes deveríamos nos postar em relação aos defeitos e fraquezas dos outros. Afinal, estamos em situação de vantagem. Mas do contrário, em vez de sermos gratos, em vez de sermos misericordiosos e complacentes, reclamamos insatisfeitos, exigimos mais, inquirimos e requeremos sempre mais, como se a benevolência que nos é dispensada não fosse mais do que mera obrigação. Por outro lado, se fazemos algo a alguém, mesmo que a menor ação, que não nos custou qualquer privação e esforço, nos exaltamos e exigimos honras de chefes de Estado.

Agimos com se fôssemos o centro das atenções, como se tudo que se passa fosse em função de nos, para nos atingir ou para nos servir. Agimos como se a nós não fosse cabido dar nossa contribuição, servir, compreender, suportar, tolerar, etc., em bem de as pessoas suportarem-se mutuamente e viver em sociedade.

Se não suportamos nada, se nada nos dispomos a sofrer e perdoar, nada fazemos pela paz. Se nada nos satisfaz, se tudo exigimos sem nem mesmo expressar gratidão e considerar os bons atos alheios quando fazemos juízo das pessoas, não cooperamos com a convivência. Se nada que se faça e nem o tempo pode aplacar-nos a obstinação por vingança e revanche; se devolvemos todo mal com a mesma moeda, não contribuímos com a paz, pois reproduzimos a agressão. Se não nos privamos de reproduzir a agressão com o pretexto de punir e dar lição no agressor, não temos a menor vontade de conter o mal, pois o mal seria contido se parasse em nós, que pensamos que somos bons. Mas não somos, pois nosso desejo é igual ao dos maus – o desejo de vencer, subjugar e rebaixar a altivez alheia.

Wilson do Amaral