Manhãs Para Sempre
Parece que esse é o momento certo pra fazer alguma coisa. O momento certo de se mover é sempre aquele que me encontro já podado das minhas patinhas, quer sejam elas as físicas, quer sejam elas as psicológicas. Não tenho praticamente nada a deixar para trás, exceto meus escritos inúteis empilhados e empoeirados ao lado de uma bacia azul cheia de coisas inúteis e obtusas, um gato que já não quer mais saber de ficar em casa, uma mãe mártir e uma ex-namorada que era a única pessoa em todo o planeta que acreditava no meu potencial e que, enfim, também não aguentou meu derrotismo doentio.
"Foi pouco antes de o piloto pular, com a porta da cabine aberta e os navios militares nos seguindo, com o radar invisível nos procurando, a porta aberta com as turbinas zunindo e o ar uivando, que ele se aprumou em seu pára-quedas e gritou: 'Por que você quer tanto morrer?'.
E eu gritei para ele que tivesse certeza de que ouviria a gravação.
'Então lembre-se', ele continuou berrando, 'você não sabe exatamente quando o combustível vai acabar. É possível que você morra no meio da história da sua vida.'
Então eu gritei de volta: 'E isso lá é novidade?'.
É, nem me fale."
É, nem me fale. Acordei de ressaca sem ter bebido nada, frequentei um evento com gente bonita e descolada e maconheira e vi a tela do caixa eletrônico me dizendo de forma lacônica que eu não tinha saldo disponível pra fazer um saque de vinte reais. Só sobrou uma concha de arroz doce de janta depois de 9 horas de jejum e que eu consegui derrubar numa bermuda preta. Não sei crase nem ênclise; nem próclise nem mesóclise. Estou fodido, arruinado.
Ocorreu-me que alguém que não tem passado e tem o presente nulo tem no futuro e no suicídio um arrombo à porta do Céu.
Depois de picar duas bananas de qualquer jeito e jogá-las no copo do liquidificador já previamente preenchido com leite e açúcar e aveia descobri que o motor dele está emprestado. De novo. Novamente. Praqueles parentes agregados dos meus meio-irmãos. Praquela fábrica de filhos. Aquelas sementeiras da dor - aqueles ventres, eu quero dizer.
"E se você estiver prestando atenção, então o que você encontrou é a história de tudo o que deu errado".
É demais pra minha cabeça ficar três dias sem conseguir cagar e ir preparar um laxante natural e me deparar com a frustração; é demais pra minha paciência essa cambada que caga um filho atrás do outro passar o final de semana na praia e não comprar um liquidificador; é demais minha mãe emprestando o motor, dinheiro, atenção, mangueira, rolo de papel higiênico, videogame, modem 3G, paciência, saco de açúcar, arroz, feijão pruns preás bípedes e supostamente pensantes.
"O sol me acorda onde estou encolhido, ao lado do fogão, com um facão na mão. Da forma como eu me sinto, a idéia de ser morto até que não é má. minhas costas doem. Meus olhos parecem ter sido abertos com uma lâmina. Visto-me e vou trabalhar".
Foi basicamente assim que acordei naquela manhã do caralho - uma manhã para sempre -- amém! Tinha descoberto que deixando a mão sob o peso do meu quadril doía menos. Só que mesmo assim, mesmo com o peso anestesiando como um placebo - ou como uma religião qualquer -, doía; afinal, eu estava com o pisiforme quebrado e não podia tomar o remédio pra dor porque ele sempre me faz dormir mais de doze horas toda vez que o tomo e eu tinha apenas quatro horas pra dormir pra depois acordar e me vestir e ir trabalhar. Com a mão inchada, com os olhos ardidos de tanta lágrima de ódio reprimido expurgando. Sim, uma manhã terrível para todo o sempre, sendo o último dominó sendo o primeiro a cair e fazer aquele gradativo processo de queda e queda e queda até que o Contador de Pensamentos de Suicído alcançou a marca de 148 pensamentos suicidas - 148 pedras desabadas, uma a uma, enfileiradas como ossos num ossuário organizado por um aplicado coveiro -- então eu enfrentei o chuveiro, depois de parcamente ter escovado os dentes, depois de parcamente ter limpado o rabo; não conseguindo fechar muito os dedos; mas fechando o suficiente pra envolver meu pau curioso naquela nova mão. Então ele foi envolvido e movimentado.
"Agora que me recordo, os especialistas em psicologia dos jovens, os conselheiros escolares, dizem que a maioria dos casos de suicídio adolescente eram garotos se estrangulando enquanto se masturbavam. Seus pais o encontravam, uma toalha enrolada em volta do pescoço, a toalha amarrada no suporte de cabides do armário, o garoto morto. Esperma por toda a parte. É claro que os pais limpavam tudo. Colocavam calças no garoto. Faziam parecer... melhor. Ao menos, intencional. Um caso comum de triste suicídio adolescente."
Mas não sou mais um adolescente. A adolescência é um porre. Principalmente a dos outros. Mas naquele momento, entre dor e prazer e sangue - eu cuspia sangue sem saber o porquê -- cuspia sangue no meu membro e lubrificava-o para uma mais prazerosa matinal masturbação - naquele momento, depois de empurrar com a ponta do dedão do pé a porra pro ralo, eu olhei fixamente as lâminas de barbear e pensei: essa é uma manhã para sempre. Um raio de sol bateu no meu rosto.
"Hoje é um daqueles dias que o sol sai para te humilhar".
As tragédias são tão rápidas e duradouras. Há manhãs que são para todo o sempre.
Disseram que eu devo me esforçar mais.
Parece que estou deitado no Litoral Baiano e parece que ela está no Litoral Africano. Estamos na mesma cama, e tudo aconteceu porque eu olhava fixamente pro teto pensando num garrote com linha de pesca e não respondi uma pergunta que ela fez. As pessoas se importando comigo e eu me imaginando cruzando o bairro com uma corda no ombro, procurando uma árvore frondosa e imponente. Estamos na mesma cama, enrolados em cobertores diferentes e finos, e esta é uma madrugada terrível; tenho vontade de tocá-la - é só esticar o braço. No entanto, não consigo. Há um oceano de perguntas não respondidas entre nós. Há nela dúvidas errôneas sobre mim, sobre nós, sobre tudo, sobretudo. No entanto, minhas próprias elucidações sobre tudo isso afundaram neste hiato que nos separa - neste oceano negro e frio e profundo - e se amarraram lá, com uma âncora das mais pesadas. Ela não pode estar inclusa nesse pacote de perdas com que fui contemplado neste agosto horrível.
Ela não pode estar inclusa nesse pacote de perdas com que fui contemplado neste agosto horrível.
Ela não pode estar inclusa nesse pacote de perdas com que fui contemplado neste agosto horrível.
Ela não pode estar inclusa nesse pacote de perdas com que fui contemplado neste agosto horrível.
Mas eu não consigo esticar o braço e nem abrir a boca.
"E o segredo é que isso machuca cada vez menos, até o ponto em que você não sente mais nada".
Durmo. Durmo, esperando a inevitável convergência do não-mais-sentir ao amanhecer. Durmo, apenas.
Com o sonho de não acordar.
28/08/2011 - 00h32m
*Com trechos - todas as aspas - extraídos do livro "Sobrevivente", Chuck Palahniuk.
* Música: Help Yourself - Death In Vegas