TENHO SAUDADE DE MIM

Tenho saudade de mim. De quando não precisava ser assim ou assado. Eu não possuía qualquer tipo de definição ou prumo. Somente provava do sabor do eterno sem preocupar-me em obter impressões ou enriquecer-me de experiências. Agia sem sequer imaginar o que era a vida e que ela tivesse esse nome esquisito de “vida”. Vagava por aí como um anjinho imortal, um desencarnado trajando carne. Viver era prosaico: acordar, ser caprichosamente eu mesmo e por último dormir um sono pesado, inviolável como a morte. Cada dia era um ciclo completo constituído de um nascimento, uma vida e uma morte, perfeitos em si, porque totalmente ausentes de significado. Ah, se a felicidade existe, ela está assentada na falta de significado das coisas... Quando as coisas são o que são sem necessidade de explicação estamos no Éden. A partir do momento que ansiamos entender algo, mordemos a famosa maçã da árvore do bem e do mal. Somos automaticamente expulsos do paraíso tendo que levar no lombo dicionários, enciclopédias e o resto da biblioteca. Nem precisa de qualquer Jeová para consignar a extrusão. Daí para o inferno é só um pulo: finalmente chegamos nele quando algo que considerávamos que compreendíamos perde seu significado (que nem lhe deveria ser atribuído inicialmente, diga-se de passagem) e ingressa no terreno da incerteza. O certo é que tudo ia muito bem até que eu começasse a brincar com os assuntos dos adultos, fingindo ser um deles. Brinquei bem demais, treinei bastante, anos a fio, desejei ardentemente ser homem e deu no que deu. Resultado é que aqui discorro verborragicamente sobre a vida sem saber mais o que ela não é; aonde ela não irá me levar; até quando. Os psicólogos dizem que pensar nisso causa depressão... Muitas pessoas dizem que sou doentio por ficar pensando muito nisso. Então sou, pronto. Mas o outro “eu” do qual tenho saudade, choraminga sua solidão aqui por dentro. Nas entranhas, eu o sinto. Porém tão extraviado está nessa mata densa, fechada: a floresta negra de minha experiência. Não se nasce de novo sem jogar a totalidade do que se foi adquirido fora, sem piedade, sem remorsos. É... Talvez exista mesmo a reencarnação. E para nascer de novo numa mesma vida é preciso “desvestir-se” com o máximo de coragem. Ah, mas como isso dói. Porque o desvestir-se é jogar fora uma pele (e eu não sou cobra). É assim, deste jeitinho que a vida passa e ninguém por si muda. Mas a mudança "acontece" por sua conta e risco e apesar de nós, incrível; aliás, sempre acontece.