Não estamos acostumados....

Já faz algumas semanas que uma frase vem me incomodando bastante. Todos os brasileiros lembram-se com tristeza da tragédia que houve em Realengo-RJ, quando um ex-aluno entrou na escola e atirou a sangue frio em crianças e adolescentes que haviam acordado naquela manhã apenas para irem estudar. Sonhos, planos, projetos foram assassinados de modo cruel naquela manhã.

Certamente os familiares daquelas vítimas nunca mais serão os mesmos, pois provavelmente todas as manhãs, lembram-se daquele dia que se despediram de seus filhos. O povo brasileiro ficou em alerta. O Ministério da Educação se viu diante de uma situação que exigia mais segurança nas escolas. O Ministério da Saúde viu de modo explícito a vocação nos médicos e enfermeiros que não estavam de plantão, mas correram para os hospitais, mesmo sem serem chamados, a fim de salvar a vida daquelas crianças. (abro parênteses para expressar minha admiração e respeito por esses profissionais da saúde, que trabalham não apenas pelo dinheiro, mas porque amam vidas. Muito obrigada)

Porém, no meio de todo esse drama, uma frase dita por um dos médicos (não lembro o nome dele no momento) do Ministério da Saúde me chamou atenção. Em uma das entrevistas dadas para a imprensa, em meio a uma das respostas dadas às inúmeras perguntas feitas que acabavam por terminar em uma única questão, ele deu uma resposta que me deixou pensativa. A resposta foi: “Não estamos acostumados com esse tipo de violência”... Ok. Pleno acordo com ele, realmente, nunca havia acontecido algo do tipo em nosso país, e realmente não estamos acostumados com esse tipo de violência, talvez se fosse um estupro, ou um assalto, ou quem sabe ainda, se as crianças fossem feitas reféns por um grupo de bandidos que estavam fugindo da polícia, talvez até entenderíamos a situação, mas essa em especial não, pois não estamos acostumados...

Sinceramente? Essa frase não saiu da minha mente, como assim não estamos acostumados? Comecei a me perguntar se seria possível nos acostumarmos com tal violência. Pensei se em um futuro próximo eu teria uma conversa trivial com uma vizinha mais ou menos assim:

− Oi fulana, você viu só? Entraram em uma escola e mataram 5 crianças.

− A menina, normal, isso acontece direto, mês passado foi em tal cidade, e há umas duas semanas ocorreu em tal estado, isso está acontecendo direto, já estou até acostumada...

Ei, um momento. É possível se acostumar com isso? É realmente possível acostumarmo-nos com a ideia de mandar os filhos para a escola correndo esse risco? Minha vontade definitivamente é gritar bem alto, escrever em letras garrafais, em negrito, sublinhado, itálico, e com pisca-pisca que NÃO! Não é possível, mas em meu íntimo estou tentada a acreditar que seja.

Ora, não sejamos hipócritas, queremos afirmar que não, mas sabemos que é possível. Por quê? Porque já nos acostumamos com outras atrocidades sem ao menos percebermos. Já fizemos esse negócio de “acostumar” várias vezes, e poderemos fazer novamente. Já nos acostumamos com assaltos, ninguém mais se espanta ao ver no noticiário que um banco foi assaltado. Ninguém mais fica chocado ao ver uma mulher apanhar do marido, e são poucas as pessoas que ainda ficam perplexas ao verem crianças sendo vítimas de maus tratos. Simplesmente porque estamos acostumados.

A ciência nos diz que o que nos diferencia dos animais é nossa capacidade de raciocinar. Somos animais racionais. Denominamo-nos de seres humanos, e agora me pergunto calada até onde somos humanos? Quando começamos a deixar nosso instinto animal florir? Até onde somos animais? Quando começamos a ser humanos?

É uma pergunta que não sai da minha mente. Um calafrio percorre meu corpo ao pensar na ideia de sermos capazes de nos acostumar com tais crueldades. Um medo incessante me vem à mente cada vez que me lembro da frase do médico... “Não estamos acostumados com esse tipo de violência”

E quer saber o que é pior? O pior é ter consciência que isso se aplica claramente às nossas vidas. Acostumamo-nos com tantas coisas que em outro tempo jamais aceitaríamos. Valores, princípios, padrões de moral e ética que eram imprescindíveis hoje se toram banais, simplesmente porque nos acostumamos.

Como me doi escrever isso, mas é a pura verdade. Lágrimas me vêm aos olhos ao pensar que isso ocorre em todos os departamentos da sociedade. Ao olharmos para o Planalto, não nos assustamos com nada, porque estamos acostumados. Ao olharmos para famílias totalmente desestruturadas onde crianças são abusadas física, psicológica e sexualmente, mulheres apanham de seus maridos e sofrem estupros com freqüências, e maridos são traídos por suas esposas, vemos com nojo e repulsa líderes evangélicos roubando dinheiro da igreja em nome de Deus e, não fazemos nada, simplesmente porque estamos acostumados.

É, nos acostumamos. E a culpa é nossa. Toda nossa. Entramos em um estado de letargia. Isso mesmo, letargia. Segundo o dicionário, letargia significa: “estado de profunda e prolongada inconsciência, semelhante ao sono profundo, do qual a pessoa pode ser despertada, mas ao qual retorna logo a seguir”. Foi simplesmente isso que aconteceu conosco, entramos em um estado de inércia em relação ao que acontece no mundo, fechamos os olhos porque não queremos ver. Dormimos o sono da indiferença porque queremos fugir da realidade, às vezes até somos despertados, mas ao nos depararmos com a realidade voltamos rapidamente aos nossos ninhos mesquinhos, nos concentramos em nossos pequenos mundos, e fingimos que tudo vai bem, simplesmente porque nos acostumamos.

Esse texto que escrevo é mais um desabafo. Sinceramente desejo que essa afirmação dita pelo médico mexa tanto com sua mente como mexeu comigo. Espero que você também fique incomodado, a ponto de não conseguir ver um noticiário apenas como um noticiário. Espero sinceramente que possamos acordar dessa letargia que estamos vivendo, e nos desacostumar com essas atrocidades que permeiam nossa geração.

Kelly Priscila

25/06/11 – Limeira, SP

15:53

Café e Leitura
Enviado por Café e Leitura em 27/06/2011
Reeditado em 02/05/2013
Código do texto: T3059281
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