Minha Última Travessia - Gula

Eu abri os olhos, e meu estômago soltou um forte ronco.

Reparei que estava sujo de terra, então me levantei e sacudi a poeira, até ficar razoavelmente limpo.

Minha cara estava meio amassada, e após algum tempo intrigado, imaginei que era normal estar com a cara amassada (ou estar todo amassado) depois de ser empurrado de uma varanda e cair 30 metros e dar de cara no asfalto.

O que não era normal era não estar com o corpo doendo.

Ou melhor, ainda estar vivo.

Então eu olhei para trás e vi que não era bem assim.

Lá estava eu, esparramado no chão, e uma grande poça de sangue crescendo à minha volta.

E o mundo escureceu, como se tivesse passado alguns séculos em um piscar de segundos. A rua, vazia, se encheu de rachaduras no asfalto, e os prédios desbotaram completamente, a ponto de ficarem da cor de um mingau cinzento enjoativo.

E um ser, a coisa mais incrível que já vi na... enfim, que já vi, apareceu ao meu lado. Me explicou da minha morte, o que eu poderia ver como verdade naquela poça de sangue (tão parecida com a que banhara o a carne do churrasco do dia anterior, dando um cheiro... aaahh...) que saía do meu corpo cada vez mais branco. Disse também que teria que aceitar esse fato, se eu quisesse seguir adiante.

Nem pensei, ou hesitei. Simplesmente tomei a mão que o ser me oferecia.

E começou a chover. Gotas grandes e gordas começaram a despencar do céu nublado (não estava assim antes...) e cair sobre mim, sobre a rua e sobre os prédios.

Senti cheiro de carne assada.

Comecei a farejar, e o cheiro parecia vir da chuva, que derretia os prédios, derretia a rua, tornando tudo uma espécie de lama submersa na água da chuva. Eu andava e andava, tentando farejar a fonte do cheiro, e percebi que vinha de mim.

Era eu que estava assando.

Eu tropecei e caí. Por baixo da camada de água (era água mesmo?) o asfalto tinha se dissolvido em uma espécie de lama, e eu estava afundando nela. Tentei me erguer e achar alguma coisa para me segurar, e o que vi foi apenas extensões daquela lama enxarcada pela chuva que caía.

Pensei em gritar, a dor era insuportável. A chuva me assava e aquilo doía.

Mas então, tive uma idéia melhor.

O cheiro era delicioso.

Decidi dar uma provadinha...

Hum..! Delícia!