Vai passar
O choro de uma criança interrompe a minha leitura. Por sobre as páginas do livro, vejo a mãe que corre a acudir a filha, a levantá-la do chão e esfregar-lhe seus escoriados cotovelos e joelhos.
- Vai passar, querida, vai passar - ela lhe diz, sem aperceber-se que, neste consolo trivial e cotidiano, encerra-se a maior sabedoria do mundo.
Sim, vai passar.
As nossas pequenas e grandes dores diárias passarão, os cortes cicatrizarão, as mágoas definharão no esquecimento, os corações partidos se reconstituirão desde estilhaços e amarão uma vez mais.
A infância despreocupada, de jogos e amizades fugazes, passará, assim como a flor de nossa juventude, as provas na escola, as discussões com nossos pais, o primeiro namoro e as incertezas sobre o futuro.
Tudo isto passará.
O trabalho e o chefe insuportáveis, os amores, as brigas, as dívidas e as riquezas, os nossos bens e os nossos males passarão. A velhice e seus pesares, suas enfermidades, sua melancolia passará.
Também passarão os nossos medos e as nossas certezas, os nossos tabus, os nossos tão prezados valores, a nossa fé e a nossa ciência. Deus e o Diabo passarão. A Filosofia, a Arte, a vida e a morte passarão, e delas não se terá rastro algum.
Tudo passará como aquilo que já foi também passou. Impérios ruíram e grandes líderes jazem em tumbas, ao lado de profetas e bandidos. Nossos belos edifícios de concreto, aço e vidro passarão, assim como os monumentos de outrora. Nada restará senão pó e olvido.
Nosso planeta passará e toda a vida que nele há. As montanhas, riachos, mares, florestas e desertos passarão. Nosso sol e todas as estrelas ao redor passarão, retornando ao nada de onde um dia surgiram.
Até a Ampulheta do Tempo passará, naquele instante em que não houver mais ser pensante a considerar a passagem do tempo.
Sim, até o tempo passará.
Eu passarei e você passará: fatal e - quiçá - única verdade.
A criança volta a brincar, a mãe observa-a à distância, eu retorno à leitura de meu livro.
O instante de sabedoria se perde, sem nos darmos conta, passa.